A Igreja de Antioquia foi implementada por crentes foragidos e perseguidos. Evangelistas anónimos, espalhados pela perseguição que iniciou após o martírio de Estêvão (8.2-4), avançaram pelos vilarejos e cidades até a Fenícia, Chipre e também para Antioquia da Síria, proclamando o Evangelho de Jesus Cristo (At 11.19b; 8.4). A maioria anunciava a palavra somente aos judeus (11.19c), e a ninguém mais. Alguns deles, porém, que eram de Chipre e de Cirene, no litoral norte da África, foram até Antioquia da Síria, e evangelizaram também aos gregos, anunciando-lhes o evangelho do Senhor Jesus (11.20).
A
igreja multiplicou-se sobrenaturalmente através do testemunho dos evangelistas
anónimos (11.19–21). Homens desconhecidos do povo, oriundos da diáspora cristã, sem
formação, sem ordenação, sem sociedade missionária, sem plano estratégico
tornaram-se pioneiros decisivos da missão aos gentios. Simplesmente
arriscaram-se a testificar: temos “um só Senhor, Jesus Cristo” (1Co
8.6). Para surpresa dos que arriscavam-se a dialogar intencionalmente com
gentios sobre Jesus, a mensagem obteve considerável aceitação: “muitos,
crendo, converteram-se ao Senhor Jesus” (11.21). Lucas indica a causa
do sucesso: “A mão do Senhor estava com eles.”
É
por isso que às vezes tendemos a pensar que o quadro de membros da igreja é a
medida do quanto Deus a está abençoando. Mas devemos ser cuidadosos quanto a
isso. O maior culto registado na Bíblia ocorreu no sopé de uma montanha, numa
dança de idolatria e blasfémia, em torno de um bezerro de ouro (em Êxodo 32). A
igreja de Arão, naquele momento, era uma mega-igreja, e fazia tudo o que Deus
desprezava. Podemos dizer que a mão do diabo estava sobre eles ao invés da mão
do Senhor, porque Deus estava enfurecido com o que o seu povo estava a fazer.
Sua atividade causou o crescimento da igreja, mas de maneira errada. Como
escreveu o Dr. Sproul: “Não podemos ter a mão do Senhor e não ter crescimento,
mas podemos ter crescimento sem a mão do Senhor”.
Além
do mais, todo o sucesso da fé e da salvação depende de Deus e nada deve ser
atribuído a nós, exceto o ministério externo. Isso deve ser sempre lembrado,
tanto para que os ministros não se percam em seu orgulho quanto para que
aqueles a quem Deus iluminou com a verdadeira fé aprendam a ser gratos a Ele.
Enfim, o crescimento da igreja é uma obra exclusiva de Deus (1 Co
3.7). De facto precisamos pregar e evangelizar, mas só Deus pode abrir o
coração dos que creem (At 16.14).
A
igreja multiplicou-se num contexto metropolitano, intercultural e multiétnico. Este episódio destaca o
impacto do evangelho na população de Antioquia da Síria (11.20). Antioquia foi
a primeira igreja internacional, formada por pessoas de culturas e etnias
diferentes. A Igreja de Antioquia tornou-se a base, o centro metropolitano,
para a expansão do evangelho para o mundo gentílico na bacia do Mediterrâneo
(13.1-4; 15.40; 18.23).
Com
uma população estimada em pelo menos 500.000, era um centro para troca de
ideias, culturas, costumes e religiões. Era uma cidade sofisticada. Naquela
época, era a única cidade do mundo antigo com iluminação noturna. Era como a
cidade de Nova York de hoje. Em 64 a.C. o general romano Pompeu conquistou a
cidade de Antioquia e envolveu-a na corporação romana. Como resultado, a partir
desse momento até os dias de Cristo e dos apóstolos, Antioquia era a terceira
maior cidade do mundo antigo, depois de Roma e Alexandria. Devido ao seu
tamanho, a cidade foi fundamental para a expansão da cristandade no 1° século
e, posteriormente, tornou-se o centro intelectual para o desenvolvimento da
teologia cristã durante os primeiros 300 anos da história da igreja (Sproul,
2017:175-181). Enfim, Antioquia foi de fundamental importância como uma área de
preparação e como a sede metropolitana para a expansão da igreja cristã entre
os gentios, e é apresentada aqui em Atos.
A
igreja multiplicou-se substancialmente sob a liderança espiritual de homens
piedosos, qualificados e com o melhor perfil para o crescimento. Quando a notícia do
despertamento espiritual de Antioquia chegou a Jerusalém, a igreja decide
enviar Barnabé, um homem de alma generosa, um pastor experiente, um judeu
helenista com o melhor perfil para promover o crescimento da igreja
(11.22).
Barnabé
não era uma pessoa invejosa. Ele viu tudo o que Deus estava a fazer entre os
gentios em Antioquia, e estava satisfeito (Rm 12.15). Ele alegrou-se ao ver a
graça de Deus nas vidas transformadas dos convertidos e exortou todos a
permanecerem firmes no Senhor (11.23).
Em
seu relato Lucas dificilmente elogia pessoas individuais. Aqui, porém, ele não
deixa de acrescentar: “Porque era homem bom, cheio do Espírito Santo e de fé.”
(11.24). Não nos surpreende que “muita gente se uniu ao Senhor” durante sua
presença em Antioquia.
Barnabé
queria ver a obra de Deus prosperar, por isso procurou Saulo, quem ele sabia
ser mais dotado para a obra do que ele (11.25). Ele partiu para Tarso à procura
de Saulo, e quando encontrou-o, trouxe-o para Antioquia. “E, por todo
um ano, se reuniram naquela igreja e ensinaram numerosa multidão. Em Antioquia,
foram os discípulos, pela primeira vez, chamados cristãos” (11.26).
É
admirável a humildade de Barnabé em querer partilhar o ministério com Saulo, e
também o seu senso estratégico, ao estabelecer uma parceria de ministério
frutífera (11.25; 13.2 –15.35). O que Barnabé fez por Saulo precisa
ser colocado em prática nas igrejas. Os cristãos maduros precisam chamar outros
membros do corpo e encorajá-los em seu serviço ao Senhor. Moody costumava
dizer: "É melhor colocar dez homens para trabalhar do que fazer o serviço
de dez homens”.
Esta
experiência em Antioquia preparou a Saulo e a Barnabé para uma missão muito
maior que se seguiria (13.1ss.). Os grandes rabinos de Israel eram pessoas
solitárias, cada qual formando sua própria “escola”, mas posicionando-se
criticamente diante de outros. Agora Saulo tinha o privilégio de experimentar o
que significa desempenhar o serviço na comunhão com um irmão. Saulo não quis
mais prescindir dessa experiência, como podemos ver na longa lista de saudações
em Rm 16.
A
igreja multiplicou-se pela distinção dos imitadores de Cristo na sociedade. Outro facto significativo
sucede em Antioquia: “foram os discípulos, pela primeira vez, chamados
cristãos” (11.26). Até agora, Lucas se referia a eles como discípulos (6.1), santos (9.13), irmãos (1.16;
9.30), fiéis (10.45), e os seguidores do Caminho (9.2).
E de “nazarenos” pelos judeus, uma expressão de desprezo (At 24.5). Agora,
Lucas passa a chamá-los de cristãos (11.26).
O
facto de os discípulos terem sido chamados de cristãos pela primeira vez em
Antioquia provavelmente reflete um rótulo aplicado pelo público incrédulo em
Antioquia e mostra que os discípulos começavam a ter uma identidade própria à
parte dos outros judeus, como membros de um grupo distinto do Judaísmo. Na
época, cristão era uma designação de cunho depreciativo usado pelos incrédulos.
Os gregos e romanos costumavam designar partidos políticos e religiosos pelos
nomes de seus fundadores. Por outras palavras, eles não chamavam a si mesmos de
cristãos, mas foram chamados por outros de cristãos. De lá para cá, porém, esse
nome tem sido usado com grande satisfação por todos os que amam o Salvador.
Esta
nova designação na narrativa de Lucas prenuncia algo das dificuldades que
aproximavam-se da igreja de Jesus por meio deste nome. O judaísmo tinha no
Império Romano o status de uma religião oficialmente
reconhecida. Como “judeus” os discípulos eram ao mesmo tempo pessoas “legais”.
Qual, porém, seria a situação dos “cristãos”? Muito em breve, sob Nero, a
palavra “cristão” torna-se uma palavra de desprezo e ódio. Numa correspondência
entre o imperador Trajano e seu governador Plínio no ano de 111–113 d. C. já se
aborda a pergunta se o simples nome de cristão como tal era merecedor de
punição.
A
palavra “cristão” ocorre três vezes no NT. A única outra vez que a palavra
ocorre em Atos, é nos lábios de um estranho à comunidade, o rei Agripa (26.28).
Em 1Pe 4.16 o termo já é usado com naturalidade. Todavia, é somente nos
escritos de Inácio, bispo de Antioquia do 2º século, que o termo foi encontrado
como uma auto-designação habitual.
A
palavra significa literalmente uma pessoa que ‘pertence’ ou ‘segue’ a Cristo.
Os cristãos não identificam-se pela nacionalidade, cultura ou idioma, mas pelo
facto de serem seguidores leais do Senhor Jesus Cristo.
Muita
gente que não nasceu de novo considera-se "cristão" simplesmente
porque participa de uma igreja, frequenta os cultos evangélicos e, de vez em
quando, até contribui para o trabalho da igreja! Mas é preciso mais do que isso
para o pecador tornar-se filho de Deus. É preciso arrependimento do pecado e fé
em Jesus Cristo, que morreu por nossos pecados na cruz e ressuscitou para nos
dar vida eterna (Wiersbe, 2006:583). David Fuller certa vez perguntou: "Se
você fosse preso sob a acusação de ser cristão, haveria provas suficientes para
condená-lo?” Em Antioquia os discípulos convertiam doutrina em
vida. Eles eram imitadores de Cristo (1 Jo 2.4). Exalavam o bom
perfume de Cristo (2 Co 2.14-16). Nossa vida, palavras, ações,
reações levam as pessoas a pensar que somos discípulos de Cristo?
A
igreja que multiplicou-se em Antioquia era generosa e totalmente comprometida
com o ministério da misericórdia. Lucas informa que “naqueles dias, desceram
alguns profetas de Jerusalém para Antioquia” (11.27; 13.1; 15.32; 21.9). Um
deles, chamado Ágabo, inspirado pelo Espírito Santo predisse uma grande fome
por todas as regiões habitadas da terra. Essa escassez de alimentos sobreveio
nos dias do imperador Cláudio, que reinou de 41 a 54 d.C (11.27-28).
Os
historiadores acreditam que essa fome ocorreu nos anos 45-48 d.C. O rio Nilo
inundou em 45 d.C., reduzindo drasticamente a colheita de grãos da qual
dependia o Império Romano, e uma grande fome atingiu a Judéia de 46 a 48 d.C. A
fome foi mais intensa na Judeia, especialmente porque no tempo de Cláudio os
judeus foram expulsos de Roma (18.2) e retornaram à Judeia sem suas casas, suas
terras e seus bens. A escassez de alimentos na Judeia foi tão grave que, de
acordo com o historiador judeu Flávio Josefo, muitas pessoas morreram por falta
de recursos para comprar a pouca comida que havia disponível.
Quando
ouviram o anúncio profético dessa fome global, os discípulos de Antioquia
decidiram enviar socorro aos seus irmãos cristãos que moravam na Judeia. A
igreja não ficou só na informação, foi à ação. Eles não podiam impedir a vinda
da fome mas podiam mandar ajuda aos necessitados.
A
graça de Deus manifestou-se nesses discípulos cuja contribuição foi unânime,
espontânea e proporcional (11.29). Cada um ofertou conforme as suas posses (At
11.29, vemos o mesmo parâmetro em 2 Coríntios 8 e 9). Eles uniram-se em amor e
deram o que podiam para ajudar àqueles que estavam com fome e em necessidade.
Eles ajudaram pessoas que não conheciam pessoalmente. Eles estavam totalmente
compromissados com o ministério da misericórdia.
A
verdadeira religião envolve não somente orar e receber a Cristo, mas envolve
também alimentar os famintos, vestir os nus, visitar os prisioneiros e ajudar a
trazer alívio em tempos de calamidade, tais como a fome descrita em Atos (Mt
25.34-40; Tiago 1.27). Os cristãos de Antioquia enviaram para Jerusalém as
doações que coletaram, interrompendo o trabalho de Paulo e Barnabé, a fim de
que pudessem entregar a oferta aos presbíteros (anciãos) da igreja de Jerusalém
(11.30).
Esta
passagem ilustra um princípio espiritual importante: se as pessoas foram uma
bênção espiritual para nós, devemos ministrar-lhes por meio de nossos recursos
materiais. Como escreveu Paulo: "Mas aquele que está sendo instruído na
palavra faça participante de todas as coisas boas aquele que o instrui" (GI
6.6).
Os
cristãos de Jerusalém haviam levado o evangelho a Antioquia. Enviaram Barnabé
para exortar os recém-convertidos. Enviaram Ágabo para edificar e consolar a
igreja. Nada mais certo do que os gentios de Antioquia retribuírem e enviarem a
ajuda material de que seus irmãos e irmãs na Judéia precisavam (At 24.17; Rm
15.23-28).
A
igreja de Antioquia é um excelente exemplo de como nós, cristãos, devemos
demonstrar gratidão de maneiras práticas aos que nos ajudaram em caminhada com
Jesus. Aliás, a igreja de Antioquia é uma igreja modelo para todas as igrejas:
(1) uma igreja centrada no evangelho; (2) poderosa na evangelização (11.20);
(3) que pregava o que vivia; (4) liderada por servos de Deus fiéis e
qualificados (At 11.26; 13.1); (5) Uma igreja generosa que, recém implementada,
pôde ajudar no suprimento material a igreja mãe em Jerusalém. (6) Esta igreja
estava debaixo da bênção de Deus (11.21). A mão do Senhor era com eles! “E Que
diremos, pois, diante dessas coisas? Se Deus é por nós, quem será contra nós?” (Rm
8.31).
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Referências: Boor, W. Comentário Esperança, Atos dos Apóstolos.
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Expositivo: Novo Testamento: volume 1. Santo André, SP: Geográfica, 2006, p.
580-585.
Pastor
Leonardo Cosme de Moraes