O verdadeiro tesouro



Mateus 13.44-46

 

As parábolas do tesouro escondido e da pérola de grande valor ilustram a resposta sincera que o reino dos céus exige. As analogias dramatizam a suprema importância do reino dos céus e da alegria de encontrá-lo. 

Ambas as parábolas instiga-nos a trocarmos tudo aquilo que considerámos o centro da nossa vida e concentrarmo-nos no reino dos céus (Mt 6.33). Por outras palavras, quem compreender o verdadeiro valor do reino como Jesus o apresenta, trocará alegremente tudo o mais para segui-lo. Assim como os discípulos de Jesus que descobriram o tesouro do reino e deixaram tudo para seguir o Senhor Jesus. 

Esta interpretação está de acordo com tudo o que Jesus sempre ensinou sobre o caminho da salvação (Mc 10.21). Jesus ordenou aos que buscavam a vida eterna que negassem a si mesmos e o seguissem. Suas palavras às multidões, em Marcos 8.34–37, não poderiam ser mais diretas: “Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me. Quem quiser, pois, salvar a sua vida, perdê-la-á; e quem perder a vida por causa de mim e do evangelho, salvá-la-á. Que aproveita ao homem, ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma? Que daria um homem em troca de sua alma? Em João 12.25, sem deixar nenhuma sombra de dúvida, Jesus afirma: “Quem ama a sua vida perdê-la-á, e quem neste mundo odeia a sua vida, guardá-la-á para a vida eterna”.

Para interpretar as parábolas de Jesus, é necessário ter sempre em consideração determinados princípios hermenêuticos: (1) Não podemos usar uma parábola para interpretar outra. (2) O simbolismo utilizado numa parábola não deve ser levado a extremos. (3) A maioria das parábolas traz uma lição principal - ilustram uma verdade central. 

Por exemplo, não é dito que o campo, nesta parábola, seja o mundo. “O campo é o mundo” (v. 38) aplica-se à parábola do joio. A semente ali semeada ilustra os filhos do reino. Já o campo na parábola do semeador representa um coração cultivado, e a semente é a Palavra. Portanto, as figuras utilizadas não representam as mesmas coisas em todas as parábolas.

Não podemos perder de vista o(s) foco(s) central(ais) da(s) verdade(s) ilustrada(s) numa parábola. Comprar este campo não sugere comprar a salvação e, portanto, não viola a doutrina da graça (Is 55.1; Ef 2.8-9). Em vez disso, a parábola enfatiza o valor supremo do tesouro escondido (o reino dos céus), que vale muito mais do que qualquer “sacrifício” que alguém poderia fazer para adquiri-lo. A parábola, na verdade, nem mesmo trata de “sacrifícios”, já que a pessoa que o encontra recebe um valor muito maior. 

A mensagem da parábola do tesouro escondido (Mt 13.44). No mundo antigo, não havia bancos, cofres ou afins. O procedimento normal para se esconder e proteger objetos de valor era enterrá-los num lugar secreto. A história judaica está repleta de batalhas, cercos, e conquistas dos exércitos inimigos que chegavam para saquear. Josefo, o historiador judeu do primeiro século, escreveu sobre “o ouro e a prata e a mobília preciosa que tinham os judeus, os proprietários escondiam sob a terra, por causa dos destinos incertos da guerra”.

 A parábola não informa como foi que o homem encontrou o tesouro. Talvez tivesse sido contratado pelo dono da terra para cultivá-la, ou talvez passasse casualmente pelo campo, tendo tropeçado numa parte do tesouro que estivesse descoberta, e colocou-o imediatamente no lugar onde o achou. Vendeu, então, tudo o que tinha e comprou o campo para que o tesouro passasse a ser seu.

 Obviamente, este tesouro não pertencia ao dono do campo, pois ele tê-lo-ia escavado e tirado antes de vender a terra. Sem dúvida teria pertencido a algum antigo dono do campo, já morto. Poderia ter ficado ali por várias gerações até que foi descoberto. “As atitudes deste homem demonstram sua honestidade. Ele poderia ter simplesmente levado consigo o tesouro. Ou poderia ter tirado um pouco do tesouro, só o suficiente para comprar o campo. Em vez disso, vendeu tudo o que tinha e comprou todo o campo, de modo que ninguém poderia acusá-lo de haver obtido o tesouro indevidamente” (MacArthur, 2008).

 A mensagem central é a seguinte: Jesus explicou que o reino dos céus é um tesouro pelo qual vale a pena abrir mão de tudo o que se tem. Tudo o que o homem possui não vale nada em comparação ao reino dos céus. 

A mensagem da parábola da pérola de grande valor (13.45-46). Na parábola da pérola de grande valor deparamo-nos com um comerciante especializado no ramo de compra e venda de pérolas. Ao contrário do homem que tropeçou no tesouro escondido (Mt 13.44), esse comerciante procurava diligentemente pelas pérolas excelentes. Mas quando ele encontrou a pérola de grande valor (o reino dos céus), sua reação foi a mesma: ele sacrificou tudo o que tinha e comprou-a (13.45-46).

Mais uma vez, o argumento de Jesus era que aquilo que o homem faz por uma pérola valiosa é exatamente o que o crente deve fazer para ganhar o reino. O reino dos céus vale muito mais do que tudo o que se possa ter. Seu valor excede muito ao dos tesouros deste mundo ou às pérolas mais excelentes. Mesmo assim, a sua riqueza passa despercebida da maioria das pessoas.

 Lições espirituais

  • Tal como o tesouro oculto no campo, multidões passam por ele sem jamais notarem a sua presença. Em 1 Coríntios 2.14, lemos que “o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las porque elas se discernem espiritualmente”.  Então, como alguém pode perceber as realidades do reino? No mesmo capítulo, em 1 Co 2.10, diz: “mas Deus no-lo revelou pelo Espírito.” Deus abre os corações para que compreendam o valor inestimável do seu reino.
  • O homem que achou o tesouro vendeu tudo o que tinha movido por pura alegria (Mt 13.44). Ele alegra-se em desistir de tudo pelo reino. A fé salvadora é assim. O coração que crê rende-se ao Senhor com grande alegria.  Paulo, por exemplo, compreendeu a alegria de desistir de tudo em troca de um ganho maior. Comparado ao tesouro de conhecer a Cristo, tudo o mais, em sua vida, ele considerou como refugo (veja Filipenses 3.7,8).
  • Estas parábolas ensinam que a fé salvadora é uma rendição incondicional, uma disposição para fazer o que quer que seja que o Senhor mandar. Ensinam que o verdadeiro discípulo deixa qualquer coisa que opõe -se a Cristo ou que vier a entrar em competição com Ele (Mt 10.39; 16.25; Lucas 14.25–35). Esse desejo de render-se à autoridade divina é a marca de todo verdadeiro discípulo. É a manifestação inevitável da nova natureza (2 Co 5.17).
  • A salvação é, ao mesmo tempo, gratuita e caríssima. A vida eterna é um dom gratuito (Rm 6.23). Ela foi comprada por Cristo, que pagou o resgate com o seu sangue. Mas isto não significa que não haja um custo no que toca ao impacto da salvação sobre a vida do pecador. A vida eterna causa a imediata morte do ego. “Sabendo isto, que foi crucificado com ele o nosso velho homem” (Rm 6.6). Trata-se de uma troca de tudo o que somos por tudo o que Cristo é.
  • O verdadeiro cristão é o que é, e faz o que faz, por estar totalmente persuadido de que vale a pena. Por outro lado, as pessoas não convertidas são o que são porque não estão plenamente persuadidas de que vale a pena ser diferente. Não querem tomar sua cruz. Não desejam comprometer-se. Não vêm para o lado de Cristo por não estarem convencidas de que esta é a solução. Elas não estão seguras da realidade do “reino do céus”. Eles não estão convencidas de que o “reino” possui tanto valor, um valor que justifique concentrar toda a vida nele (Ryle, 2018). O Senhor Jesus, porém, ensina-nos que não vale a pena tentar ganhar a própria vida e, por fim, perder a vida que realmente importa - a vida eterna.
  • Investidores experientes geralmente não concentram todo o seu dinheiro num único investimento. Mas foi exatamente isso o que ambos os homens destas parábolas fizeram. O primeiro vendeu tudo e comprou um campo; o segundo vendeu tudo e comprou uma pérola. Igualmente, quem realmente crê em Cristo não faz duplos investimentos. O crente verdadeiro assume o compromisso e entrega-se inteiramente a Cristo (Lucas 14.28–31); assim como Moisés, que “considerou o opróbrio de Cristo por maiores riquezas do que os tesouros do Egito, porque contemplava o galardão” (Hb 11.26). Ele abandonou as riquezas do mundo para sofrer por amor a Cristo. Ele trocou o Egito por uma recompensa celestial. Esta é a única atitude que poderá abrir as portas do reino (MacArthur, 2008). Então, você também deseja ter Cristo a qualquer preço? Você já rendeu-se ao senhorio de Cristo? Ele reina em seu coração? Tudo isso acontece quando alguém nasce de Deus. São evidencias da fé salvadora.

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Referências: Carson, D. A. 1984. “Matthew”. (Gaebelein, F. E., ed. The Expositor’s Bible Commentary: Matthew, Mark, Luke, vl. 8 8. Grand Rapids, MI: Zondervan, p. 327-329). / Crossway Bibles, The ESV Study Bible (Wheaton, IL: Crossway Bibles, 2008), 1849. / Lopes, H. D. 2019. Mateus: Jesus, o Rei dos Reis: Comentários Expositivos Hagnos. SP: Hagnos, p. 437–438. / MacArthur, J. 2008. O Evangelho Segundo Jesus. São José dos Campos, SP: Editora FIEL, p. 177–187. / Ryle, J. C. 2018. Meditações no Evangelho de Mateus. São José dos Campos, SP: Editora FIEL, p. 146–148. / Sproul, R. C. 2017. Estudos Bíblicos Expositivos em Mateus. SP: Editora Cultura Cristã, p. 387–392.

 

Leonardo Cosme de Moraes 


O joio e o trigo

  Mateus 13.24–30; 36–43 

 

Quando Jesus veio, Ele anunciou a chegada do reino a este mundo. “Foi como se ele estivesse expandindo as fronteiras do céu” (Sproul). Nesta parábola, Jesus ilustra um aspecto do reino com base numa metáfora agrícola: “O reino dos céus é como um agricultor que semeou boas sementes em seu campo (Mt 13.24).

 

O texto informa que “enquanto os servos dormiam, seu inimigo veio, semeou joio no meio do trigo e foi embora” (Mt 13.25). Semear joio no campo de outro agricultor era uma forma que as pessoas no mundo antigo tinham de vingar-se dos inimigos (Mt 13.24-25); tudo na tentativa de atrapalhar a colheita e destruir a fonte de renda de uma pessoa. Este tipo de atividade cruel era um problema tão grande, que o governo romano estipulou punições para aqueles que fossem apanhados no acto.

 

Os agricultores vingativos costumavam semear o “joio”, uma espécie de erva daninha (provavelmente a cizânia), que produz uma semente imprestável, quase idêntica à do trigo. No início, todos os brotos aparentavam ser iguais, de modo que era difícil perceber a presença do joio no meio do trigo. Porém, conforme as plantas se desenvolviam, as ervas daninhas logo tornavam-se aparentes (13.26-27).

 

As raízes do trigo e do joio crescem entrelaçadas e fica praticamente impossível arrancar um sem o outro. Por isso, o dono da terra decidiu não arriscar-se a destruir toda a plantação tentando arrancar o joio durante o crescimento da safra. Antes, deixou o trigo e o joio crescerem juntos até à colheita, quando então os ceifeiros separariam a semente boa da ruim, pois a diferença seria óbvia.

 

Mateus 13.36 informa que depois que o Senhor despediu as multidões e foi para casa, os discípulos pediram-lhe: “Explica-nos a parábola do joio do campo”.

A explicação de Jesus começa de forma simples: “O que semeia a boa semente é o Filho do homem”. Este é o título que Jesus usou mais do que qualquer outro para referir-se a si mesmo. Este título O identifica em sua humanidade, como o Verbo encarnado, a perfeição em tudo o que um homem poderia ser. Fala dEle como o último Adão; o representante sem pecado da raça humana. E também O associa à profecia messiânica de Daniel 7.13.

 

De acordo com Mateus 13.38, “o campo é o mundo” e não apenas Israel ou a igreja. Subentende-se que o Filho do Homem é o dono do campo. Ele tem em suas mãos o título de propriedade. “A boa semente são os filhos do reino”. Os filhos do seu reino são pessoas que crêem, os que são submissos ao Rei. E Ele os semeia por todo o seu campo, que é o mundo = a sociedade humana. O Joio são os filhos do maligno; o inimigo que o semeou é o diabo” (Mt 13.38,39). Estes são os incrédulos, retratados em outras passagens do Novo Testamento como filhos do diabo (Veja João 8.44 e I João 3.10).

 

O significado desta parábola não é complicado: O Filho do Homem — Jesus — semeou os filhos do seu reino no mundo. O inimigo — Satanás — estragou a pureza da seara, misturando os seus filhos àqueles que o Filho do Homem semeara. Esses filhos incrédulos do maligno vivem lado a lado com os crentes, no mundo. No juízo final, Deus irá separar o joio do trigo. 

 

Portanto, Jesus está descrevendo como o mundo é. No mundo tem gente trigo e gente joio. Deus permite que crentes e incrédulos vivam no mundo até o dia do julgamento. Ele retém o julgamento imediato por causa dos salvos que estão no mundo (2 Pe 3.9). Portanto, o trigo e o joio continuarão a “crescer juntos até à colheita”.

 

Muitos interpretam esta parábola como um conselho de Jesus para não tentarmos ter uma igreja pura, porque o Senhor fará as distinções corretas somente no juízo final. Mas este é um grande equívoco. Toda igreja é responsável perante Deus por praticar tanto a auto-disciplina quanto a disciplina interpessoal (Veja Mt 18.15-18; 1Co 5.2–3; 2Co 2.5–11).

Em nenhum lugar de Mateus o “reino” torna-se “igreja” (veja em 16.18; e esp. 13.37-39). A parábola simplesmente explica-nos como o ‘reino dos céus’ pode estar presente no mundo sem eliminar toda a oposição. A oposição só vai acabar no dia da colheita, no juízo final.

 

É verdade que Satanás gosta de semear o joio o mais próximo possível do trigo, e ele semeia um pouco dele na igreja. Mas esta parábola não está a ensinar aos crentes que devem tolerar incrédulos na comunhão dos santos. Nada temos a ver com falsos mestres e falsos crentes (2 Jo 9–11; 1 Co 5.2,7).

 

Quando as Escrituras reconhecem a dificuldade em se distinguir as ovelhas dos bodes, a questão central não é que os crentes possam parecer incrédulos, mas, pelo contrário, que os ímpios frequentemente parecem justos. Os crentes não se disfarçam de filhos do diabo. O oposto disso é que é verdade: Satanás se finge de anjo de luz, e os seus servos imitam os filhos da justiça (2 Co 11.14,15). 

 

Esta parábola, portanto, contém instruções para a igreja no mundo, e não um “passe-livre” para o mundo entrar na igreja (MacArthur). Satanás semeia os seus filhos por toda parte. Nós, que pertencemos ao reino de Cristo, habitamos e convivemos no mesmo planeta dos incrédulos. Contudo, jamais podemos ter comunhão com eles e nem mesmo consentir com suas transgressões (2 Co 6.14–16; Rm 1.18-32).

 

A mensagem do trigo e do joio é esta: “Deus não autoriza esforço algum que vise exterminar os incrédulos pela força. Os discípulos estavam prontos a empunhar a foice e exterminar os filhos do diabo. Tiago e João, os filhos do trovão, perguntaram a Jesus: “Senhor, queres que mandemos descer fogo do céu para os consumir?” (Lc 9.54). É isto, em essência, que os servos do dono da terra estavam a perguntar quando disseram: “Queres que vamos e arranquemos o joio?” (Mt 13.28). O Senhor disse-lhes que tal não fizessem, porque com isso poderiam destruir também o trigo (MacArthur, 2008). 

 

Deus não chama o seu povo para exercer um ministério de inquisição. Não é este o tempo de arrancar o joio. Nossa missão não constitui-se numa cruzada político-militar. Somos enviados para ser embaixadores de Cristo; emissários de sua graça e misericórdia. Fomos plantados neste mundo pelo Senhor. Devemos ficar onde fomos plantados e frutificar. 

 

Concordo com Agostinho que disse: “Os que hoje são joio amanhã poderão ser trigo”. Um filho do maligno pode ser transformado num filho do reino. É nisto que consiste a salvação. Em Efésios 2, Paulo escreveu que “éramos por natureza filhos da ira, como também os demais” (Ef 2.3). A salvação dá-nos uma nova natureza, transformando-nos de “filhos da desobediência” (Ef 2.2) em membros da família de Deus (Ef 2.19); de joio, em trigo. “Somos feitura de Deus, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas” (Ef 2.10). No sentido espiritual, todo trigo começa como joio (Sproul, 2017).

 

É-nos ordenado ensinar o evangelho (cf. Mt 28.19,20) e viver como exemplos de retidão. Mas não somos os executores de Deus. A justa retribuição de cada um está nas mãos do Senhor. 

 

No tempo da colheita, o trigo e o joio serão separados. “Os ceifeiros são anjos” (Mt 13.39), que executarão o juízo no final dos tempos. O joio — os filhos do maligno — serão ajuntados e queimados (Mt 13.40). O inferno será a sua habitação eterna. Os ceifeiros “os lançarão na fornalha acesa; ali haverá choro e ranger de dentes” (Mt 13.42). Os filhos do reino — “os justos” (Mt 13.43) — habitarão eternamente no reino.

 

Os anjos, os ceifeiros de Deus, não errarão no diagnóstico. Jamais trigo será lançado no fogo, e jamais joio será recolhido no celeiro de Deus. Os filhos do maligno sofrerão o infortúnio eterno (Jd 6,7; Ap 14.9–11; 20.10), enquanto os filhos do reino desfrutarão de felicidade eterna (Ap 21.1–5).

 

Como os ceifeiros farão distinção entre o trigo e o joio? O grão maduro estabelece diferença entre o joio e o trigo. O joio pode assemelhar-se ao trigo, mas não pode produzir o grão do trigo. Os filhos do maligno podem imitar os filhos do reino, mas não podem produzir a retidão verdadeira (veja Mt 7.18). Por causa de sua natureza inerente, o trigo irá produzir grãos de trigo, mesmo se cultivado num campo repleto de joio. Assim também são os filhos do reino. No juízo final, portanto, a diferença entre os filhos do reino e os filhos do maligno será completamente manifesta.

 

Aplicação pastoral: Não devemos ser demasiadamente brandos (1 Co 5.4-5) e nem demasiadamente rígidos na prática da disciplina eclesiástica (2Co 2.5–11). Spurgeon alerta-nos sobre o facto de que disciplinadores precipitados muitas vezes expulsam o melhor e mantêm o pior. Charles Ryle adverte: “Quem não se importa com o que acontece ao trigo, contanto que possa remover o joio, demonstra possuir bem pouco da mente de Cristo”.

 

Nós devemos exercer paciência uns em relação aos outros, sem aplicar a disciplina da igreja de imediato. Estamos aqui para encorajar uns aos outros, orar uns pelos outros e edificar uns aos outros, não para destruir uns aos outros. Somos informados, no Novo Testamento, de que “o amor cobre multidão de pecados” (1Pe 4.8).

 

O objetivo da disciplina na igreja é duplo: purificar a igreja do escândalo e recuperar irmãos que caíram em pecado grave. Muitas transgressões podem exigir disciplina na igreja, mas existe apenas um pecado pelo qual alguém pode ser excluído do corpo de Cristo: a impenitência. 

 

Sempre que uma pessoa é disciplinada, há etapas ao longo do processo, e ela recebe oportunidades de se arrepender e ser restaurada a uma situação positiva na igreja. Caso não se arrependa após múltiplas advertências, então – e somente então – ela é excluída. É claro, entretanto, que nem mesmo uma exclusão é definitiva. Se a pessoa removida da comunidade local vier a se arrepender, ela poderá ser restaurada (1 Co 5.4-5; 2Co 2.5–11).

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Referências: Carson, D. A. 1984. “Matthew” (in Gaebelein, F. E. The Expositor’s Bible Commentary: Matthew, Mark, Luke, vl. 8. Grand Rapids, MI: Zondervan Publishing House. p. 315–317. / Crossway Bibles, The ESV Study Bible (Wheaton, IL: Crossway Bibles, 2008), 1848. / Hendriksen, W. 2010. Mateus, vl. 2: Comentário do Novo Testamento. SP: Cultura Cristã, p. 76–83. / Lopes, H. D. 2019. Mateus: Jesus, o Rei dos Reis: Comentários Expositivos Hagnos. SP: Hagnos, p. 431–434. / MacArthur, J. 2008. O Evangelho Segundo Jesus. São José dos Campos, SP: Editora FIEL, p. 169–176. / Ryle, J. C. 2018. Meditações no Evangelho de Mateus. São José dos Campos, SP: Editora FIEL, p. 142–145. / Sproul, R. C. 2017. Estudos Bíblicos Expositivos em Mateus. São Paulo: Cultura Cristã, p. 375–381.


Pr Leonardo Cosme de Moraes 

O PECADO IMPERDOÁVEL

 Mateus 12.22-32

 

Jesus libertou e curou um endemoninhado cego e mudo. Ao sair o demónio, o homem passou a ver e a falar (12.22). Mateus não costuma referir-se aos incidentes de libertação de demónios como “curas”; ele prefere dizer que o demónio foi expulso (Mt 8.16). Neste caso, entretanto, tanto o poder de cura quanto o poder libertador de Jesus agiram para resolver as múltiplas aflições do homem. Como consequência, ele ficou completamente são.  

Diante do poder extraordinário de Jesus para curar e libertar, a multidão ficou tomada de admiração e começou a pensar seriamente que ele poderia ser o Messias de Israel (12.23). Familiarizados com as profecias messiânicas, interrogavam-se: “Será que este homem é o Filho de David?”. 

“No entanto, quando os fariseus souberam do milagre, disseram: “Ele só expulsa demónios porque seu poder vem de Belzebu, o príncipe dos demónios” (12.24). Belzebu é usado aqui para descrever o próprio Diabo, como o “governante dos demónios”.  

Os fariseus não negaram a realidade sobrenatural dos milagres de Jesus, mas atribuíam o poder que Jesus tinha sobre os demónios a Satanás. Eles reconheciam o poder de Jesus, mas atribuíam-no à fonte errada. Deste modo, trataram o Messias de Deus como um feiticeiro demoníaco (cf. 9.34; 10.25).

 Guerra entre os reinos (12.25-30)

Os fariseus estavam a sugerir que o reino de Satanás estava dividido internamente – uma ideia absurda. Se o reino de Satanás estivesse tão dividido contra si mesmo, como os fariseus aparentemente imaginavam estar, ele seria um reino extinto. Porém, todos sabiam que Satanás estava actuando no planeta terra. 

O argumento de Jesus é claro: qualquer reino, cidade ou casa, que desenvolva briga interna destrói a si mesmo. O mesmo é verdade para o “reino” de Satanás (12.26). Se o que os fariseus diziam era verdade, o dominador estaria destruindo o próprio domínio; o príncipe, o próprio principado. 

Entretanto, o reino de Satanás é um sistema unificado. “Contra o Senhor Jesus, Pilatos e Herodes se uniram e se tornaram amigos (Lc 23.12). Herodes e Pilatos se ajuntaram […] contra o teu santo Servo Jesus […] com gentios e gente de Israel (At 4.27). Portanto, as forças do mal insurgem-se contra as do bem, e não umas contra as outras.” (Lopes). 

Jesus demonstra que a ideia dos fariseus é absurda. A união de esforços é fundamental para a manutenção da existência de qualquer reino, cidade, família ou instituição. Basta um mínimo de racionalidade, lucidez e bom-senso para perceber isto. Até o reino das trevas sabe que “a união faz a força”. 

A incoerência das acusações contra Jesus tornou-se uma armadilha contra os próprios acusadores, pois Jesus argumenta: “E, se eu expulso demônios por Belzebu, por quem os expulsam vossos filhos? Por isso, eles mesmos serão os vossos juízes” (12. 27). Ou seja, se Jesus estava a expulsar os demónios no poder de Belzebu, os discípulos dos fariseus também estavam. Os fariseus nunca admitiriam isso, mas não podiam escapar da lógica do argumento. 

A verdade, porém, era que Jesus expulsava demónios pelo Espírito de Deus. A libertação dos cativos pelo Espírito de Deus era uma prova da chegada do reino de Deus sobre eles (v. 28). O reino de Deus estava sobre eles porque o rei estava entre eles, mas eles ainda não haviam percebido que o Rei estava lá! Pior ainda; estavam opondo-se ao Reino de Deus.

Uma verdade solene pode ser destacada aqui: a existência de dois reinos. Jesus afirma com clareza a existência do reino de Satanás, assim como já havia falado muitas vezes sobre o reino de Deus (12.26-27). Jesus não nega o poder de Satanás; antes, afirma que ele é um valente. Satanás tem uma organização de súditos em seu reino tenebroso. Jesus referiu-se várias vezes a Satanás como o “príncipe deste mundo” (Jo 12.31; 14.30; 16.11). Paulo falou do “príncipe da potestade do ar, do espírito que agora opera nos filhos da desobediência” (Ef 2.2) e dos “dominadores deste mundo tenebroso” (Ef 6.12).  

Isto significa que há dois reinos. Uma intensa batalha é travada entre os dois reinos, e não há território neutro (12.30). Se você não está no reino de Deus, só existe um reino onde pode estar: no reino do maligno. No entanto, Satanás não é páreo para Deus. Por mais ativo e forte que seja Belzebu, ele não tem poder para impedir a obra de Cristo. Ao expelir os demónios, Jesus demonstra que é mais forte do que o valente. Ele entra na casa do valente, imobiliza-o e arranca de seu reino aqueles que estão cativos (At 26.18; Cl 1.13).  

Enfim, o reino de Deus, inaugurado no advento de Cristo, atropelou o reino de satanás. Jesus venceu Satanás e rompeu o seu poder. Satanás é um inimigo limitado e está debaixo da autoridade absoluta do Senhor Jesus Cristo (Cl 2.15). 

Os fariseus, no entanto, acusaram Jesus de expelir demónios pelo poder de Satanás, mas os verdadeiros servos de Satanás eram eles, que tentavam atrapalhar o trabalho de Deus. 

Em relação a algumas questões e pessoas, a neutralidade é possível e, às vezes, até sábia. Mas em nosso relacionamento com Jesus não pode haver neutralidade (12.30). Quem não se decide por Cristo, decide-se contra Cristo. Quem com ele não ajunta, espalha. 

Será que existe alguma coisa mais politicamente incorreta do que dizer: “Se você não crê em mim, pertence ao reino de Satanás; se você não me segue, é meu inimigo; se você não é por mim, é contra mim”? Jesus estava a dizer que só há um caminho, e ele é o caminho (Sproul, 2017).  

Aqueles que recusam-se a vir a Cristo estão em rebelião contra o Rei dos reis. Mas em Atos 17.30, a Escritura diz: “No passado Deus não levou em conta essa ignorância, mas agora ordena que todos, em todo lugar, se arrependam. (At 17.30). 

O pecado imperdoável (12.31-32)

Embora o evangelho ofereça perdão gratuitamente a todos os que se arrependem de seus pecados, há um limite estabelecido nesta passagem: A blasfêmia contra o Espírito Santo. Jesus declarou que este pecado não pode ser perdoado nem no presente nem no futuro (Mateus 12.31-32). Marcos acrescenta: “Mas aquele que blasfemar contra o Espírito Santo não tem perdão para sempre, visto que é réu de pecado eterno.” (Mc 3.29,30) 

Frequentemente, o pecado imperdoável é identificado com a descrença persistente e final em Cristo. Visto que a morte acaba com a oportunidade de uma pessoa arrepender-se do pecado e crer em Cristo para a sua salvação. Embora a descrença persistente e final traga tais consequências, não explica adequadamente a advertência de Jesus sobre a blasfémia contra o Espírito Santo. Blasfémia (ou calúnia contra) o Espírito Santo é algo que se faz com a ‘boca', a ‘caneta’ ou o ‘teclado’. Envolve palavras (falada ou escrita). 

Aqueles fariseus haviam acabado de sugerir que Jesus expulsava demónios pelo poder de Satanás. Isto certamente era blasfémia, mas, visto que tais afirmações haviam sido direcionadas a Jesus, eles tecnicamente não estavam a blasfemar contra o Espírito. No entanto, Jesus disse que expulsava demónios “pelo Espírito de Deus” (Lc 12.28). Deste modo, os fariseus estavam a caluniar o Espírito de Deus. 

Na cruz, Jesus orou pelo perdão daqueles que blasfemaram contra Ele com base em sua ignorância: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23.34). Entretanto, se as pessoas são iluminadas pelo Espírito Santo a ponto de saberem que Jesus é verdadeiramente o Cristo, e então O acusam de ser satânico, elas cometeram um pecado para o qual não há perdão (Sproul, 2017).  

A blasfêmia contra o Espírito Santo é imperdoável porque é um pecado consciente e deliberado de atribuir a obra de Cristo pelo poder do Espírito Santo a Satanás. Esse pecado constitui uma irreversível dureza de coração. Spurgeon observa que o indivíduo culpado desse pecado, de imputar as obras de Cristo e seu poder gracioso à agência diabólica, pecou numa condição na qual a sensibilidade espiritual está morta e o arrependimento tornou-se moralmente impossível. 

Esta passagem preocupa muitas pessoas, que se perguntam se cometeram ou não esse pecado. Três coisas devem ser mantidas em mente: (1) A natureza do pecado é atribuir o que é uma obra óbvia do Espírito Santo ao próprio Satanás; (2) não é simplesmente uma dúvida momentânea ou atitude pecaminosa, mas é de facto uma condição de oposição intencional, consciente e deliberada à obra do Espírito Santa; e (3) uma pessoa que está preocupada e angustiada com isso provavelmente nunca cometeu esse pecado. Ninguém pode sentir tristeza pelo pecado sem a obra do Espírito Santo. Quem comete esse pecado, jamais sente tristeza por ele. Jamais mostrará qualquer arrependimento. O temor de pensar ter cometido o pecado imperdoável é, por si só, evidência de que tal pessoa não o cometeu. 

Billy Graham disse que devemos hesitar em sermos dogmáticos em nossas afirmações sobre aqueles que cruzaram a linha divisória da paciência de Deus. Somente Deus sabe se e quando alguém ultrapassa essa linha do pecado para morte (Lopes, 2019). 

Por fim, muitas as pessoas querem saber se um cristão verdadeiro é capaz de cometer este pecado. É certo que, por si mesmo, qualquer crente teria a capacidade ou potencialidade de blasfemar contra o Espírito Santo. Contudo, estou convencido pelas Escrituras de que Deus, em sua graça soberana, não permite que os verdadeiros crentes - os filhos do reino - cometam este pecado.  

Ao falar dos salvos em Cristo, a Bíblia ensina que “aquele que começou boa obra em vós há de completá-la até ao Dia de Cristo Jesus” (Fp 1.6). “Que mediante a fé estais guardados na virtude de Deus para a salvação, já prestes para se revelar no último tempo” (1 Pe 1.5). A Bíblia afirma que Deus “é poderoso para vos guardar de tropeçar, e apresentar-vos irrepreensíveis, com alegria, perante a sua glória” (Jd 1.24). 

Além disso, a Escritura afirma a segurança da salvação em Cristo. O Senhor Jesus disse: “Todo o que o Pai me dá virá a mim; e o que vem a mim de maneira nenhuma o lançarei fora. Porque eu desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou. E a vontade do Pai que me enviou é esta: Que nenhum de todos aqueles que me deu se perca, mas que o ressuscite no último dia. Porquanto a vontade daquele que me enviou é esta: Que todo aquele que vê o Filho, e crê nele, tenha a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia” (João 6.37-40). Noutra ocasião, o nosso Senhor declarou: As minhas ovelhas ouvem a minha voz, e eu conheço-as, e elas me seguem; e dou-lhes a vida eterna, e nunca hão de perecer, e ninguém as arrebatará da minha mão. Meu Pai, que mas deu, é maior do que todos; e ninguém pode arrebatá-las da mão de meu Pai.” (João 10.27-29) 

É com esta segurança inabalável em mente que escreveu Paulo: “Porque estou certo de que, nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as potestades, nem o presente, nem o porvir, nem a altura, nem a profundidade, nem alguma outra criatura nos poderá separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor” (Rm 8.38-39). 

Mas para que ninguém esteja enganado, a Escritura também adverte: “… tornamos participantes de Cristo, desde que, de fato, nos apeguemos até o fim à confiança que tivemos no princípio” (Hb 3.14). Que seja, nossa participação passada nas bênçãos do evangelho só é válida se continuarmos Nele. Os que deixam a ‘igreja de Cristo’, a comunhão dos santos, simplesmente demostram que de facto nunca pertenceram realmente a ela. É o que lemos em 1 João 2.19: “Saíram de nós, mas não eram de nós; porque, se fossem de nós, ficariam conosco; mas isto é para que se manifestasse que não são todos de nós” (1 João 2.19). 

Portanto, o verdadeiro cristão é alguém que foi justificado diante de Deus (Rm 8.1) e que nasceu de novo pelo poder do Espírito Santo (Jo 3; 1 Jo 5.1-13), cuja vida é caracterizada pela lealdade, constância e perseverança no caminho do Senhor.  

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Referências: Carson, D. A., ed. 2018. NIV Biblical Theology Study Bible. Grand Rapids, MI: Zondervan, p. 1723-1724, 1850. / Biblical Studies Press, The NET Bible First Edition Notes (Biblical Studies Press, 2006), Mt 12,32-35. / Lopes, H. D. 2019. Mateus: Jesus, o Rei dos Reis: Comentários Expositivos Hagnos. SP: Hagnos, p. 395-406. / MacDonald, W. 2011. Comentário Bíblico Popular: Novo Testamento. SP: Mundo Cristão, p. 51–52. / Ryle, J. C. 2018. Meditações no Evangelho de Mateus. São José dos Campos, SP: Editora FIEL, p. 128–132. / Sproul, R. C. ed. 2015. The Reformation Study Bible: English Standard Version. Orlando, FL: Reformation Trust, p. 1739. / Sproul, R. C. 2017. Estudos Bíblicos Expositivos em Mateus. SP: Editora Cultura Cristã, p. 328–339.

 

Leonardo Cosme de Moraes 

 

A PAIXÃO DE CRISTO

 

Mateus 27.27-61

 

Assim que Pilatos ordenou sua morte, Cristo começou a ser maltratado pelos soldados romanos incumbidos de crucificá-lo. Num acto de extrema humilhação, eles tiraram a roupa de Jesus e vestiram-no com um manto vermelho, como símbolo jocoso de realeza. Em seguida, eles fingiam curvar-se diante dele e saudavam-no como rei dos judeus. Todavia, aquele que estavam a ridicularizar como rei era, de facto, o Rei. Eles estavam a fazer aquilo com o Filho de Deus, o Deus encarnado, o Rei eterno (Mt 27.27-29). 

 

Depois de todo este escárnio, o tratamento dispensado a Jesus ficou ainda mais cruel. Mateus escreve: “E, cuspindo nele, tomaram o caniço e davam-lhe com ele na cabeça. Depois de o terem escarnecido, despiram-lhe o manto e o vestiram com as suas próprias vestes. Em seguida, o levaram para ser crucificado” (Mt 27.30-31). 

 

Mateus continua: “Ao saírem, encontraram um cireneu, chamado Simão, a quem obrigaram a carregar-lhe a cruz" (v. 32). Era costume os presos serem forçados a carregar a cruz na qual morreriam – ou pelo menos, as vigas horizontais – enquanto eram levados para o local da crucificação. Assim, o facto de os soldados terem obrigado um homem chamado Simão, um nativo de Cirene, para carregar a cruz sugere que Jesus já estava muito debilitado fisicamente. O Senhor já havia sido açoitado, e é possível que tivesse perdido muito sangue. Marcos menciona que Simão tinha dois filhos, Alexandre e Rufo (Mc 15.21), e escreve como se os leitores de seu evangelho estivessem familiarizados com eles. Isto sugere que Simão, depois daquele encontro, teve fé em Jesus e criou seus filhos na igreja. 

 

Mateus, em seguida, diz: “E, chegando a um lugar chamado Gólgota, que significa Lugar da Caveira, deram-lhe a beber vinho com fel; mas ele, provando-o, não o quis beber" (Mt 27.33–34). O Lugar da Caveira era o lugar onde as pessoas eram mortas. E quando Jesus chegou ali, os soldados deram-lhe “vinho com fel”. Jesus estava com sede, mas o fel deixou o vinho intragável, e ele recusou-se a bebê-lo. 

 

Então, Mateus escreve: “Depois de o crucificarem …” (Mt 27.35a). Cravos atravessaram as mãos, ou os pulsos, de Jesus e foram cravados na madeira da viga transversal. Outros cravos também perfuraram seus pés. Este era um método de execução extremamente doloroso. Além disso, este tipo de morte era terrivelmente humilhante. 

 

Os soldados já haviam despido Jesus temporariamente a fim de divertirem-se no pretório (Mt 27.28), mas, quando chegaram ao Gólgota, tiraram as vestes dele novamente porque os criminosos eram executados nus. O objetivo era fazer com que o prisioneiro se sentisse humilhado e desonrado. Mateus informa que este acto de humilhação específico havia sido predito numa profecia do Velho Testamento (Mt 27.35b). Os soldados lançaram sortes para determinar quem ficaria com os as peças de roupa de Jesus, e isto havia sido profetizado no Salmo 22.18.

 

Depois da crucificação, a principal tarefa dos soldados era ficar de guarda até que Jesus morresse (Mt 27.36). Contudo, eles tinham pelo menos mais uma tarefa para executar: "Por cima da sua cabeça puseram escrita a sua acusação: ESTE É JESUS, O REI DOS JUDEUS” (27.37). Esta iniciativa tinha em vista os transeuntes, e seu objetivo era adverti-los a não cometerem o mesmo delito. João relata que Pilatos foi quem ordenou que se fizesse esta inscrição, e que ela incomodou os sacerdotes e anciãos. Eles pediram-lhe que alterasse os dizeres para: “Ele disse: Eu sou o Rei dos judeus”, mas Pilatos recusou-se (Jo 19.19–21). 

 

Mateus também observa: E foram crucificados com ele dois ladrões, um à sua direita, e outro à sua esquerda (Mt 27.38). Marcos informa que este facto também cumpriu uma profecia: a de Isaías 53.12 - “e foi contado com os transgressores” (Mc 15.28).

 

Mateus volta a descrever as zombarias e insultos que Jesus enfrentou. “Os que iam passando blasfemavam dele, meneando a cabeça e dizendo: Ó tu que destróis o santuário e em três dias o reedificas! Salva-te a ti mesmo, se és Filho de Deus, e desce da cruz! De igual modo, os principais sacerdotes, com os escribas e anciãos, escarnecendo, diziam: Salvou os outros, a si mesmo não pode salvar-se. É rei de Israel! Desça da cruz, e creremos nele. Confiou em Deus; pois venha livrá-lo agora, se, de fato, lhe quer bem; porque disse: Sou Filho de Deus (Mt 27.39–42).

 

“Os mesmos impropérios lhe diziam também os ladrões que haviam sido crucificados com ele” (Mt 27.43). Felizmente, sabemos que um dos dois arrependeu-se e colocou sua fé em Jesus antes de morrer (Lc 23.39–43). Talvez ele tenha se arrependido ao ouvir Jesus perdoando aqueles que o crucificavam (Lc 23.34), que convenceu-se de que Jesus era o Salvador e pediu-lhe para participar do seu reino que viria (v.42).

 

Este foi um suplício terrível para Jesus, mas algo muito pior estava por vir. No auge do dia, entre meio-dia e 15h, houve trevas (Mt 27.45). Esta escuridão foi um sinal do juízo divino sobre o pecado que Jesus estava a carregar em seu corpo no madeiro. Isto explica o que aconteceu em seguida. Mateus diz: Por volta da hora nona, clamou Jesus em alta voz, dizendo: Eli, Eli, lamá sabactâni? Uma mistura de hebraico com aramaico que significa: Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste? (Mt 27.46). 

 

Quando o pecado do homem é transferido a Jesus, como os pecados de Israel eram transferidos ao bode expiatório, o Pai interrompe a comunhão com o seu Filho. Naquele momento Deus fez cair sobre ele a iniquidade de todos nós. Deus puniu o nosso pecado nele. Foi na cruz que Jesus suportou o justo castigo que os nossos pecados merecem. Ele foi feito maldição por nós.

 

Alguns presentes não perceberam o que Jesus disse: “ouvindo isto, diziam: Ele chama por Elias” (Mt 27.47). Ao que parece, pelo menos um dos espectadores sentiu certa compaixão de Jesus e ofereceu-lhe algo para beber – ou talvez simplesmente quisesse que ele continuasse falando. Outros, porém, o dissuadiam para ver se Elias de facto viria (Mt 27.48-49). 

 

Enquanto esperavam, lemos: E Jesus, clamando outra vez com grande voz entregou o espírito (Mt 27.50). Lucas relata que, logo antes de morrer, Jesus clamou as seguintes palavras: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito!” (Lc 23.46); e, segundo João, ele também disse: “Está consumado!” no momento da morte (Jo 19.30). 

 

O que estava consumado? Certamente o desamparo do Pai por causa dos pecados que Jesus voluntariamente assumiu como o representante, o fiador e o substituto dos pecadores. O seu sacrifício vicário e expiatório terminara. Ele realizara a obra para a qual o Pai o havia enviado. A obra da redenção estava concluída.

 

O Calvário não foi um acidente, mas um plano divino. A morte sacrificial de Cristo estava no plano de Deus antes da fundação do mundo (1Pe 1.18-20; Ap 13.8; At 2.23). Cristo foi para a cruz porque o Pai o entregou por amor (Jo 3.16, Jo 1.29). Cristo voluntariamente deu a sua vida (Jo 10.17, Gl 1.4; 2.20; Ef 5.25). Ele é o pastor que dá a sua vida pelas ovelhas (Jo 10.11-18). Vede quão grande amor nos tem concedido o Pai, que não poupou seu próprio Filho, mas o entregou para a nossa salvação. O Santo no lugar dos pecadores, o justo no lugar dos injustos.

 

Mateus, em seguida, relata várias manifestações que ocorreram após a morte de Jesus. Ele escreve: Eis que o véu do santuário se rasgou em duas partes de alto a baixo (Mt 27.51a). Esta era a cortina do Santo dos Santos, o lugar mais sagrado para o judaísmo, situado no interior do templo. 

 

Imediatamente após a morte de Cristo, Deus fez com que a cortina de 25 metros de altura, cuja função era separar o povo de sua presença, fosse rasgada – e, a fim de indicar que a ação tinha origem divina, ela foi rasgada de cima para baixo. Esta foi uma declaração simbólica de que a barreira entre a humanidade pecadora e o Deus santo havia sido removida através do sacrifício expiatório de Cristo.  

 

Agora temos livre acesso a Deus por meio de Cristo. Agora não precisamos de sacerdotes como mediadores. Agora um novo e vivo caminho foi aberto para o céu. O véu rasgado simboliza a consumação da obra de Cristo. O véu rasgado significa que Cristo venceu o pecado.

 

Assim como houve trevas na terra enquanto Jesus estava pendurado na cruz (Mt 27.45), outro fenómeno natural aconteceu no momento de sua morte: um terremoto que fendeu as rochas (Mt 27.51b). A natureza identifica-se com o sofrimento do Filho de Deus.

 

Por último, Mateus relata um episódio inusitado: “abriram-se os sepulcros, e muitos corpos de santos, que dormiam, ressuscitaram; e, saindo dos sepulcros depois da ressurreição de Jesus, entraram na cidade santa e apareceram a muitos (v. 52–53). Mateus é o único evangelista a fornecer este detalhe. Como devemos interpretar isso?

 

No domingo, com a ressurreição de Jesus, vários mortos ressuscitaram e dirigiram-se a Jerusalém, onde foram vistos por muitas pessoas. Não sabemos se esta ressurreição foi como a de Jesus, o qual recebeu um corpo glorificado, ou se foi mais parecida com a ressurreição de Lázaro, o qual recebeu uma prolongação da vida neste planeta e, mais tarde, morreu de novo para aguardar a ressurreição final. Seja como for, por que Deus fez isso?

 

Em sua morte, Jesus removeu o aguilhão da morte, de modo que a morte de crente não é mais o castigo pelo pecado, mas a transição para uma dimensão melhor (Fp 1.23–24). Quando morremos, o nosso corpo dorme, mas nosso espírito vai imediatamente para a presença de Cristo, cuja existência é muito melhor do que aquilo que temos neste mundo (Lc 23.43; 2Co 5.8).

 

Neste incidente, vemos um sinal, uma promessa de que, na morte e ressurreição de Cristo, a morte foi derrotada. As sepulturas foram abertas, e as pessoas saíram vivas. Cristo entrou nas entranhas da morte e venceu a morte e todo aquele que nele crê não morrerá eternamente.

 

Quando a cortina rasgou-se, a terra tremeu e as sepulturas foram abertas, o centurião e seus homens foram tomados de pavor. Eles nunca tinham visto a morte de um prisioneiro ocasionar tais manifestações. Aquelas coisas os fizeram declarar: “Verdadeiramente este era Filho de Deus” (Mt 27.54). Jesus fora rejeitado pelo seu próprio povo, mas um pagão romano observou a forma como ele morreu e fez uma profissão de fé sobre a personalidade e a natureza do crucificado.

 

Mateus observa também que estavam ali muitas mulheres, observando de longe; eram as que vinham seguindo a Jesus desde a Galiléia, para o servirem; entre elas estavam Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago e de José, e a mulher de Zebedeu (Mt 27.55–56). Estas mulheres estavam presentes na crucificação e viram tudo o que aconteceu.

 

A mudança de humilhação para exaltação começou no sepultamento de Jesus (Mt 27.57-61). Normalmente, os corpos dos criminosos executados sob a lei romana em Jerusalém eram arrastados e lançados no lixão da cidade sem qualquer cerimónia. Isto fazia parte da desonra da execução por crucificação. Todavia, conforme foi predito no Antigo Testamento sobre o Servo Sofredor (53.7-9), o Messias seria poupado desta ignomínia, sendo sepultado “com o rico”.

 

Jesus foi sepultado no túmulo particular de um dos homens mais ricos da cidade (Mc 15.43; Jo 19.38-41). Na cruz, ao final do tormento de ser desamparado pelo Pai, ele disse: “Está consumado!” (Jo 19.30). A humilhação havia terminado. A partir daquele momento, Deus estava determinado que seu único Filho deveria ser exaltado para todo o sempre.

 

A cruz de Cristo é o nosso triunfo. Na Cruz ele desfez as obras do diabo (1Jo 3.8). Na cruz Jesus justificou-nos, perdoou-nos, reconciliou-nos com Deus. "Não há condenação alguma para quem crê nele. Mas quem não crê nele já está condenado por não crer no Filho único de Deus." (Jo 3.18).

 

Referências: Hendriksen, H. 2010. Mateus vl. 2: Comentário do Novo Testamento. SP: Editora Cultura Cristã. / Lopes, H. D. 2019. Mateus: Jesus, o Rei dos Reis: Comentários Expositivos Hagnos. SP: Hagnos. / MacDonald, W. 2011. Comentário Bíblico Popular: Novo Testamento. SP: Mundo Cristão. / Sproul, R. C. 2017. Estudos Bíblicos Expositivos em Mateus. SP: Editora Cultura Cristã. / Wiersbe, W. W. 2006. Comentário Bíblico Expositivo: Novo Testamento, vl. 1. Santo André, SP: Geográfica editora. 

 

Pr. Leonardo Cosme de Moraes