As marcas da igreja primitiva

Atos 2.42–47 

Este parágrafo é um retrato da igreja com poucos dias de vida. Ele fornece um modelo que também pode ser aplicado à igreja de nossos dias. Ele resume as características na vida da igreja em conjunto e os elementos essenciais necessários ao discipulado cristão. 

Os livros sobre a saúde e o crescimento da igreja são populares. Não faltam conferências sobre o crescimento da igreja, repletas de pastores ansiosos para imitar as técnicas de um pastor bem sucedido, ou de uma congregação que cresce rapidamente. O nosso foco, porém, não deveria ser nas marcas das igrejas atuais, mas nas marcas da igreja primitiva. Quais eram as marcas da primeira igreja em Jerusalém? 

1. Zelo doutrinário (2.42). A igreja primitiva centralizava sua atenção firme em permanecerem juntos para estudar a doutrina dos apóstolos - a palavra de Deus procedente dos apóstolos. A autoridade da mensagem dos apóstolos, à qual se submeteram, era autenticada por muitos prodígios e sinais (2.43; At 5.12,15; Hb 2.3-4; At 2.22).  

Os apóstolos foram testemunhas oculares do ministério de Jesus, foram eles que lançaram os fundamentos da igreja de Cristo (Efésios 2.20; 3.5; 1 Co 3.10,11). Uma vez que o ensino dos apóstolos chegou até nós na sua forma definitiva no Novo Testamento, a devoção contemporânea ao ensino apostólico significará submissão à autoridade do Novo Testamento. 

Hoje há quem defenda que a única forma para preservar a unidade é colocar a doutrina de lado. Mas não existe cristianismo verdadeiro que negligencie o estudo da palavra de Deus.  

Esses primeiros cristãos não pensavam que, devido ao facto de terem recebido o Espírito, esse era o único professor de que precisavam, podendo dispensar os mestres na igreja. Pelo contrário, eles assentavam-se aos pés dos apóstolos para receberem instruções. E nisto perseveravam. 

Este texto mostra que uma igreja cheia do Espírito é uma igreja que estuda a Bíblia e submete-se às suas instruções. As pessoas cheias do Espírito Santo não fogem da Escritura, tentando substituí-la por algo. Pessoas cheias do Espírito são impulsionadas em direção a Escritura, para terem suas vidas fundamentadas na Palavra de Deus. O Espírito de Deus leva o povo de Deus a submeter-se à Palavra de Deus. 

2. Vida em comunhão (2.42,44–46). A igreja primitiva reunia-se regularmente para ouvir e estudar a Palavra de Deus, mas também para desfrutar da comunhão com os irmãos. 

Muito na cultura ocidental leva-nos a um individualismo que solapa o desenvolvimento da comunhão. Em nossa cultura, nossas necessidades e direitos individuais vêm antes de qualquer necessidade do grupo. Existe uma mentalidade de consumidores. Entretanto, o retrato da igreja primitiva em Atos mostra que o bem-estar do grupo eram uma prioridade. 

Eles perseveravam na comunhão (do grego, koinonia). A palavra koinonia expressa unidade e relacionamentos íntimos. É uma participação comum num nível mais profundo através da união com Cristo. A Koinonia testemunha a vida comunitária da igreja em dois sentidos: Uma comunhão partilhada com o próprio Deus Pai, Filho e Espírito Santo. E, por consequência, uma comunhão uns com os outros.

Na igreja de Jerusalém os irmãos gostavam de estar juntos (2.44). Eles expressavam amor e harmonia. Estavam unidos de mente e coração. Existia um clima de relacionamentos afetuosos. Uma sensação de calor e cuidado permeava o conjunto, e o carinho pelos irmãos era evidente.  

Eles participavam juntos de muitas refeições (2.42, 46). O aconchego e a intimidade estão geralmente presentes quando as pessoas se reúnem em torno duma refeição. Esses pessoas sabiam como amar e ser amadas, umas pelas outras. 

O partir do pão não significa apenas que eles comiam juntos. Refere-se à celebração da Ceia do Senhor, que desde o princípio é o centro da adoração cristã. No grego, o artigo definido precede o substantivo pão e assim especifica que os cristãos partilhavam do pão separado para a comunhão (com em 20.11; 1Co 10.16).  

Eles apreciavam estar no templo (2.46) e também nos lares (2.46b). Eles não tinham um edifício suficientemente grande para abrigar os 3.000, então iam de casa em casa, nas várias residências, onde juntos partilhavam a fé.  

Eles mostravam uma espontaneidade singular no cuidado dos necessitados (2.44,45). Eles partilhavam seus bens (2.45). Tinham desapego dos bens e apego às pessoas. A igreja era como uma família, e eles ​​cuidavam daqueles que faziam parte dela (4.32, 34-35). 

Havia uma generosidade voluntária na partilhar dos bens (2 Co 8.9-15; 1 Tm. 6.6-10; 17–19). Os crentes eram sensíveis às necessidades físicas dos outros e davam sacrificialmente para atender a essas necessidades (4.34; 5.4).   

Eles não eram obrigados a vender suas propriedades (2.45; 4.32-35; 4.36-5.11). Eles davam porque queriam dar. A partilha era impulsionada pela generosidade de cada um. Eles aprenderam com os apóstolos a prática da contribuição generosa e voluntária (At 2.45; 4.32-35; 4.36-5.11). Como Paulo escreveu: “Cada um dê conforme determinou em seu coração, não com pesar ou por obrigação, pois Deus ama a quem dá com alegria” (2Co 9.7 – NVI). 

Não houve nenhuma corrida para se livrarem de todos os seus bens, como se a propriedade, em si mesma, fosse um mal; em vez disso, eles a distribuíam de acordo com as necessidades. Ambos os verbos no versículo 45 estão no tempo imperfeito, o que indica que a venda e a partilha eram ocasionais, em resposta a necessidades específicas, não feitas de uma só vez. Esse princípio é mencionado duas vezes em Atos: distribuindo ... à medida que alguém tinha necessidade (2.45), e "nenhum necessitado havia entre eles ... se distribuía a qualquer um à medida que alguém tinha necessidade" (4.34-35).  

O pecado de Ananias e Safira, em Atos 5, não foi o facto de terem ficado com parte do produto da sua venda (ganância), mas o facto de o terem feito, fingindo que estavam dando tudo (fraude). Em Atos 5.4, o apóstolo Pedro deixou claro que a doação não era uma imposição. 

Além disso, a Escritura pressupõe o direito à propriedade (Êx 20.15 - não roubarás). Nem Jesus nem os apóstolos proibiram os cristãos de manterem propriedades privadas. De acordo com o versículo 46, eles partiam pão de casa em casa. Evidentemente, portanto, muitos ainda possuíam casas e propriedades; nem todos as tinham vendido (cf.: At 2.46; 4.37, 12.12; 17.5; 18.7; 20.20; 21.8, 16; Rm 16.5; 1 Co 16-19; Cl 4.15; Fl 2; 2Jo 19). 

É evidente, porém, que somos todos chamados à generosidade; especialmente em relação aos pobres e necessitados da igreja local (Jo 12.8; Gl 2.10, 6.10). Que jamais digam que somos um povo indiferente aos necessitados. Que sejamos conhecidos por nossa generosidade, como o era a igreja do primeiro século. 

A comunhão era expressa também no culto corporativo (2.42,46).  Os quatro elementos no versículo 42 destacam a liturgia desta igreja: ensino e pregação apostólicos, comunhão dos crentes, celebração da Ceia do Senhor e orações comunitárias. 

Os artigos definidos nas duas expressões (literalmente, "o partir do pão e as orações" ) sugerem de um lado, uma referência à ceia do Senhor (embora seja quase certo que, naquele primeiro estágio, fazia parte de uma refeição maior, 1Co 11.17-34) e, do outro, reuniões de oração (mais do que orações individuais).  

A devoção dos cristãos primitivos era assunto de todos os dias. Era uma igreja que tinha alegria de estar no culto corporativo para adorar. Os cultos eram realizados tanto no templo como de casa em casa (2.46). 

Eles reúnem-se nos pátios do templo, na área chamada Pórtico de Salomão (3.1, 11; 5.12, Lc 24.51-53), para oração e louvor. Os cultos mais formais e solenes no templo eram complementados com a informalidade das reuniões nas casas. A igreja precisa de ambos. 

O culto era alegre e reverente (2.46). Em cada alma havia temor (2.43). O temor aqui não era aquele medo do castigo, porquanto o verdadeiro amor lança fora todo o medo (1 Jo 4.18). O temor aqui é um forte senso de reverência e respeito pela presença de Deus entre eles. Esta combinação entre alegria e temor, bem como de formalidade e informalidade, dava um equilíbrio saudável à adoração. 

O louvor da igreja era constante (2.47). A alegria da salvação transbordava para todos os detalhes da vida. A vida deles tornou-se um hino de louvor. A alegria dessa igreja não dependia das circunstâncias. Os apóstolos são açoitados pelo sinédrio e retiraram-se regozijando-se por terem sido considerados dignos de sofrer afrontas pelo nome de Jesus (At 5.40-42, cf. tb.: Atos 13:52). 

3. Perseverança na oração (2.42). Desde cedo a igreja aprendeu a depender mais de Deus do que dos próprios recursos. Aqueles primeiros cristãos sabiam que não podiam enfrentar a vida com suas próprias forças.  

O livro de Atos é rico em exemplos de oração (Lopes, 2012:67): Atos 1.14 – Todos unânimes perseveravam em oração; Atos 3.1 – Os líderes da igreja vão orar às 3 horas da tarde; Atos 4.31 – A igreja sob perseguição ora, o lugar treme e todos ficaram cheios do Espírito; Atos 6.4 – A liderança entende que a sua maior prioridade é ministério da oração e da Palavra; Atos 9.11 – O primeiro sinal que Deus deu a Ananias sobre a conversão de Paulo é que ele estava orando; Atos 12.5 – Pedro está preso, mas há oração incessante da igreja em seu favor e ele é milagrosamente libertado; Atos 13.1–3 – A igreja de Antioquia ora e Deus abre as portas das missões mundiais; Atos 16.25 – Paulo e Silas oram na prisão e Deus abre as portas da Europa para o evangelho; Atos 20.36 – Paulo ora com os presbíteros da igreja de Éfeso na praia; Atos 28.8,9 – Paulo ora pelos enfermos da ilha de Malta e eles são curados. 

4. Testemunho eficaz (2.47b). A evangelização não era uma atividade ocasional na igreja primitiva. O culto deles era diário (46a), e assim também o testemunho. A igreja de Jerusalém produziu impacto na sociedade por causa de seu estilo de vida. Os crentes contagiavam, conquistavam a simpatia da cidade (2.47). A Igreja primitiva estava formada por gente atrativa. 

O Senhor Jesus acrescentava a essa igreja, dia a dia, os que iam sendo salvos (2.47). O milagre da salvação ocorria todos os dias. A igreja crescia diariamente por adição de vidas salvas e por ação divina. É o Senhor Jesus quem soberanamente edifica Sua igreja (Mt 16.18; 1 Co 3.9;  At 5.14; 6.7; 11.21; 18.9, 10). 

Os convertidos demonstraram o caráter autêntico da sua salvação ao perseverar: Na doutrina dos apóstolos. Na comunhão. No partir do pão e nas orações. Os cristãos se reuniam com frequência e tinham tudo em comum (2.44-45; 4.32). 

Os cristãos que vemos em Atos encontravam-se diariamente (At 2.46), cuidavam uns dos outros diariamente (At 6.1), ganhavam almas diariamente (At 2.47), examinavam as Escrituras diariamente (At 17.11) e cresciam em número diariamente (At 16.5). O Senhor Jesus Cristo era uma verdade viva para eles! 

O nosso cristianismo é uma realidade diária? Nossa igreja tem feito a diferença na nossa cidade? Somos uma igreja cativante? Somos pessoas atrativas? Nosso estilo demarca-se do mundo? 

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Referências: Carson, D. A. 2018. NIV Biblical Theology Study Bible. Grand Rapids, MI: Zondervan, p. 1956–1957. / Crossway Bibles, The ESV Study Bible (Wheaton, IL: Crossway Bibles, 2008: 2085–2086). / Bock, D. L. 2007. Acts: Baker Exegetical Commentary on the New Testament. Grand Rapids, MI: Baker Academic. / Kistemaker, S. 2016. Atos. Comentário do Novo Testamento. SP: Cultura Cristã, p. 117–156. / Lopes, H. D. 2012. Atos: A Ação do Espírito Santo na Vida da Igreja: Comentários Expositivos Hagnos. SP: Hagnos, p. 60–70. / MacDonald, W. 2011. Comentário Bíblico Popular: Novo Testamento. SP: Mundo Cristão, p. 337–344. / Sproul, R. C. 2017. Estudos Bíblicos Expositivos em Atos. SP: Cultura Cristã, p. 36–60. / Stott, J. 2008. A Mensagem de Atos: até os confins da terra. SP: ABU. / Sproul, R. C. 2017. Estudos Bíblicos Expositivos em Atos. SP: Cultura Cristã, p. 86-93. / Wiersbe,  W. W. 2007. Comentário Bíblico Expositivo: Novo Testamento, vl. 1. Santo André, SP: Geográfica Editora, p. 531. / Marshall, I. H. 1980. The Acts o f the Apostles, an Introduction and Commentary. London: Inter-Varsity Press, p. 83-85. / Boor, W. 2002.  Comentário Esperança, Atos dos Apóstolos. Curitiba: Editora Evangélica Esperança, p.60. 

 

Pastor Leonardo Cosme de Moraes


NOSSA IDENTIDADE VISUAL

 


A representação visual destaca três aspectos importantes da nossa identidade: (1) A imagem da Bíblia destaca a centralidade das Escrituras, como a base suficiente da nossa fé e prática; (2) A cruz no centro destaca a nossa identidade cristã, pois Cristo é o centro das Escrituras e, consequentemente, o centro da nossa fé, vida e mensagem; (3) A cruz celta é uma afirmação da nossa doutrina e identidade, revelando a nossa herança Protestante; representando o nascimento, morte e ressurreição de Cristo, bem como a vida eterna no reino de Deus. Em algum momento depois da Reforma Protestante, a cruz celta tornou-se um dos símbolos do protestantismo histórico e reformado, nomeadamente das igrejas Baptistas, do presbiterianismo; do Anglicanismo e das igrejas reformadas. 


As origens da cruz de Cristo remetem à eternidade passada. Apocalipse 13.8 fala sobre o “livro da vida do Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo.” Em 1 Pedro 1.20-21, com muita clareza, lemos: “O qual, na verdade, em outro tempo foi conhecido, ainda antes da fundação do mundo, mas manifestado nestes últimos tempos por amor de vós; e por ele credes em Deus, que o ressuscitou dentre os mortos, e lhe deu glória, para que a vossa fé e esperança estivessem em Deus”. Portanto, antes mesmo do homem ter caído, quebrando a relação com Deus, Deus havia planeado o evento que iria efetuar a cura dessa relação para todos os que confiam em Cristo e, portanto, esta cruz é usada neste contexto e significado. O círculo em volta da cruz celta simboliza este plano eterno e redentor (Ap 22.13). Outros, porém, observam que com o círculo em volta da Cruz, se formam quatro espaços vazios que representam os quatro evangelhos, destacando que estamos reunidos em torno da  mensagem é evangélica. 


As cores escolhidas estão alinhadas com a tradição artística da igreja cristã. O verde representa a esperança do triunfo da vida sobre a morte e, consequentemente, da renovação e do renascimento. O branco tem sido a cor que simboliza a pureza, a luz, a vida eterna e a vitória do Ressuscitado e dos que triunfam com Ele. Portanto, a partir de um diálogo crítico e criativo com a tradição artística do cristianismo - numa perspectiva puramente reflexiva e contemplativa - as cores dos elementos gráficos podem servir para retratar diferentes traços da mensagem cristã: (1) A Bíblia aberta na cor verde e branca serve para simbolizar o conteúdo da nossa fé e esperança (1 Pe 3.15; Rm 10.17); que a Palavra de Deus é luz para o nosso caminho (Sl 119.105); é uma fonte de purificação (Jo 15.3), de edificação (1 Tm 3.16) e de regeneração (1 Pe 1.23). (2) A cruz branca destaca a pureza e a santidade do Divino Redentor que nela foi crucificado pelos pecadores (1 Pe 2.22; Ap 5.9). Aquele que morreu na cruz é a luz do mundo (Jo 8.12) e o príncipe da paz (Is 9.6; Jo 14.27); é o único mediador entre Deus e os homens (1 Tm 2.5; Jo 14.6); é a ressurreição e a vida; e quem crê Nele, ainda que esteja morto, viverá (Jo 11.25).


Tais interpretações, apesar de subjectivas e intuitivas, possuem certa relação com a história da utilização destes símbolos pelos cristãos protestantes. Nomeadamente como uma marca de identificação e de identidade, mas jamais como um ícone litúrgico; o que constituiria numa clara violação dos mandamentos Deus para o culto (Êx 20.3-4). Também não devemos ter um foco excessivo nesta questão, porquanto a ênfase do cristianismo bíblico está na Palavra de Deus escrita, proclamada e praticada (2 Tm 3.16; Rm 10.17; Tg 1.22).  


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Nota: Este logótipo foi criado pelo designer gráfico Marcus Nati


Autor da reflexão crítica: Pr. Leonardo Cosme de Moraes

Coragem de ser biblicamente cristão

 

Actos 11:19-29

Barnabé vai a Tarso procurar Paulo, que o acompanha até Antioquia. Esses dois ensinam os crentes durante um ano inteiro. Como resultado, os crentes gentios passaram a imitar de tal forma a Jesus que foram apelidados de cristãos; isto é, “gente do Cristo”. Werner de Boor (2002:173-174) observa que essa passagem nos permite pressentir algo das dificuldades que se aproximavam da igreja de Jesus por meio desse nome. O judaísmo tinha no Império Romano o status de “religio licita”, uma religião oficialmente reconhecida. Como “judeus” os discípulos eram ao mesmo tempo pessoas “legais”. Como, porém, era a situação dos “cristianos”? Muito em breve, sob Nero e Trajano, o simples nome de cristão como tal era merecedor de desprezo e punição. Tertuliano (150 d.C.) conhece o terrível grito que se levantava com cada tragédia pública: “Christianos ad leonem!” – “Lancem aos leões os cristianos!”

Pastor Manuel Alexandre Júnior

A pregação apostólica

 Atos 2.14-41

 

Os discursos ocupam um lugar de destaque no livro de Atos. Não menos que dezenove palestras cristãs significativas aparecem em Atos. Oito são de Pedro (nos capítulos 1, 2, 3, 4, 5, 10, 11 e 15), uma de Estêvão e uma de Tiago (nos capítulos 7 e 15), e nove de Paulo (nos capítulos 13, 14, 17, 20, 22-26, 28). Aproximadamente 20% do texto de Lucas é devotado às pregações de Pedro e Paulo; se acrescentarmos a pregação de Estêvão, o índice sobe para quase 25% (Stott, 2008).

 

No campo teológico fazemos uma distinção entre duas palavras gregas, kerygma e didache. O kerygma é a mensagem pregada pelos apóstolos na igreja primitiva. Esse kerygma sempre destacava que a profecia do Antigo Testamento havia sido cumprida na pessoa e obra de Jesus. Essa pregação consistia fundamentalmente numa recapitulação da vida e ministério de Cristo – seu nascimento da descendência de Davi, os milagres que realizou através do poder de Deus, e sua crucificação, sepultamento, ressurreição e ascensão ao céu. Estes eram os componentes essenciais da proclamação apostólica do evangelho, ou o kerygma (Sproul, 2017). O didache refere-se ao ensino que seguiria a pregação do evangelho. Após responderem positivamente ao evangelho e se juntarem à igreja, as pessoas recebiam instrução, a qual denominamos a parte didática da experiência cristã (como em Atos 2.42).

 

Em Atos 2.14-41 temos o registo do primeiro sermão da história da igreja cristã. Este sermão foi pregado por Pedro no dia de Pentecostes, que resultou em quase 3.000 convertidos. Quais são as características da primeira pregação apostólica? 

 

Foi uma pregação bíblica e expositiva. O sermão é dividido em três partes, cada uma das quais começa com uma chamada aos ouvintes: “homens judeus” (2.14); “homens israelitas” (2.22); e irmãos (2.29). Cada uma dessas três partes do discurso gira em torno de citações bíblicas.

 

Pedro une três citações do AT (Jl 2.28-32 nos vv. 17-21; Sl 16.8-11 nos vv. 25-28; Sl 110.1 nos vv. 34-35) com uma alusão do Sl 132.11 no versículo 30. A alusão refere-se à promessa de Deus de colocar um descendente no trono de Davi para governar, uma promessa que Pedro vê como messiânica. Todas as passagens citadas no discurso explicam o plano de Deus. Explicam que a salvação de Deus chegou por meio da vida, morte, ressurreição e exaltação de Jesus Cristo à destra de Deus (Sl 110.1).

 

Pedro, introduz sua mensagem, corrigindo uma falsa suposição do seu auditório (2.14-21). A falsa suposição dos zombadores (2.13), deu a Pedro a sua oportunidade para explicar o significado do sinal das línguas no dia de pentecostes (1 Co 14.22-23). 

 

Pedro garante à multidão que os discípulos não estão bêbados e afirma que este é o derramamento do Espírito Santo nos últimos dias que o profeta Joel previu (Nm 11.21; Is 32.15; 44.3-4; Jr 31.33-34; Ez 36.26-27; 39.29). A vinda do Espírito marca a inauguração dos tempos do fim. Os ouvintes de Pedro já estão a viver nos últimos dias, entre a primeira e a segunda Vinda de Cristo. Observe a atitude de Pedro. Há uma tremenda diferença entre o Pedro de antes e depois do Pentecostes.  

 

A citação de Joel é um exemplo da lei da dupla referência, de acordo com a qual as profecias bíblicas se cumprem de forma parcial numa época e total numa ocasião posterior. O Espírito de Deus foi derramado no Pentecostes, mas os sinais apocalípticos nos versículos 19-20 referem-se à consumação ainda futura do reino. Pedro encerra a citação de Joel no seguinte ponto: “E acontecerá que todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo” (2.21). “O Senhor” em Joel 2.32 é o Senhor Deus, e no sermão de Pedro “o Senhor” é Jesus, o que de forma implícita afirma sua divindade.

 

Foi uma pregação cristocêntrica na sua essência (2.22-36). A essência do cristianismo é centralizado no Senhor Jesus Cristo. É impossível pregar o evangelho sem proclamar Cristo. A mensagem de Pedro versou sobre a pessoa de Cristo e sua obra redentora. Cinco ênfases podem ser identificados no sermão de Pedro (Lopes, 2012).

 

(1) A vida de Cristo (2.22). Pedro mostra que Jesus foi aprovado por Deus, vivendo de forma extraordinária e realizando milagres, prodígios e sinais. Nicodemos veio a Jesus à noite e disse, “Rabi, sabemos que és Mestre vindo da parte de Deus; porque ninguém pode fazer estes sinais que tu fazes, se Deus não estiver com ele” (Jo 3.2). O ponto principal de um milagre é Deus dar seu sinal de aprovação, de confirmação, de que essa pessoa está falando a verdade e como prova de missão divina de Cristo. Os milagres que os apóstolos realizam em nome de Jesus também confirmam a verdade de sua mensagem (2.43; 4.30; 5.12; 6.8; 14.3; 15.12; Hb 2.3-4).

 

(2) A morte de Cristo (2.23). A cruz não foi um acidente, mas parte do plano eterno de Deus (3.18; 4.28; 13.29). Pedro disse ao povo que, embora homens ímpios, tanto judeus como gentios (4.27, 28), tenham matado Jesus por sua própria vontade, suas ações estavam dentro da determinação soberana de Deus (cf.tb.: 17.26; 2 Cr 25.16; Jr 21.10; Dn 11.36). 

 

Deus ordena os meios e também os fins dos eventos humanos sem violar a liberdade humana ou remover a responsabilidade humana. O exemplo clássico é José perante seus irmãos no momento de seu reencontro. Eles estavam aterrorizados julgando que José pudesse vingar-se deles, mas José tranquilizou-os dizendo: “Vós, na verdade, intentastes o mal contra mim; porém Deus o tornou em bem” (Gn 50.20). Os irmãos de José agiram traiçoeiramente e o mandaram para a escravidão, mas Deus estava a agir através disso para seus bons propósitos.

 

Embora não possamos perceber completamente como o decreto soberano de Deus pode ser compatível com a responsabilidade humana pelo mal, ambos são claramente afirmados aqui e em muitas outras passagens das Escrituras (3.13-17; 4.27-28). 

 

(3) A ressurreição de Cristo (2.24–32). A ressurreição de Cristo está no coração da fé cristã. Como o apóstolo Paulo disse à igreja em Corinto: “(…) se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé, e ainda permaneceis nos vossos pecados” (1Co 15.17). 

 

Nos versículos 24-32, Pedro confirma a ressurreição de Cristo fundamentado no Salmo 16.8–11, um salmo de coroação que profetizava a vinda do Messias. Davi não poderia estar a referir-se sobre si mesmo quando disse que Deus não o deixaria na morte nem permitiria que o seu Santo visse a corrupção (2.27), pois Davi morreu e foi sepultado, e seu túmulo ainda estava em Jerusalém (2.29). Obviamente, Davi referia-se ao seu descendente, ou seja, estava fazendo referência à ressurreição do Messias (2.30,31). 

 

Não era possível a morte retê-lo como seu prisioneiro, pois o caráter de Deus exigia a ressurreição. A Escritura diz que é através do pecado que a morte entrou no mundo (Rm 5.12). Logo, seria moralmente injusto que Deus permitisse que um homem sem pecado sofresse a maldição que Ele atribuiu ao pecado.

 

(4) A exaltação de Cristo (2.33–35). Aqui Pedro cita o salmo 110 (Atos 2.34–35), no qual o próprio Davi disse: “Yahweh disse ao meu Adonai”, ou “Disse o Senhor ao meu Soberano, assenta-te à minha mão direita”. O conteúdo desse diálogo dentro da Divindade é entre o próprio Deus e Aquele a quem Ele apontou para ser o Senhor de Davi, seu Adonai, o qual o Novo Testamento traduz κύριος, ou Senhor.

 

Resumindo, ao consumar sua obra aqui no mundo, Jesus ressuscitou em glória e comissionou seus discípulos a pregar o evangelho em todo o mundo, a toda a criatura. Depois, voltou para o céu, entrou na glória e assentou-se à destra do Pai, para governar a igreja, intercedendo em seu favor e revestindo-a com o poder do seu Espírito (Lopes, 2012). 

 

(5) O senhorio de Cristo (2.36). No coração deste texto está a afirmação do senhorio de Cristo. Deus colocou Cristo à sua destra. O primeiro credo da igreja do 1° século era curto e simples: “Jesus é Senhor”, e vemos essa confissão surpreendente na conclusão do sermão de Pedro no Pentecostes. 

 

Durante o 1° e 2° séculos, os cidadãos de Roma eram obrigados a fazer um juramento de lealdade e dizer publicamente, “Cesar é Senhor”. A comunidade cristã, no entanto, não diria isso. Eles estavam dispostos a oferecer honra e obediência ao imperador, mas não poderiam fazer o juramento de lealdade, mesmo que essa recusa lhes custasse a própria vida, porque a sua confissão era “Jesus é Senhor”.

 

Pedro proclamou a história de Jesus em três níveis diferentes - como um acontecimento histórico (testemunhado pelos seus próprios olhos), como um facto teológico (interpretado pelas Escrituras), e como uma mensagem contemporânea (confrontando os ouvintes com a necessidade da decisão).

 

Foi uma pregação clara, ousada e poderosa (2.37-41). Os ouvintes de Pedro eram como nós. Não queriam alguém dando ordens supremas sobre suas vidas, e por isso seus corações se tornaram endurecidos, mas tamanho foi o poder de persuasão do Espírito que, mesmo sem Pedro ter feito um convite ou apelo, seus ouvintes perguntaram: Que faremos, irmãos? A pergunta foi motivada por um sentimento profundo de culpa.

 

Antes de falar sobre perdão e salvação, mostrou que eles estavam perdidos em seus pecados. O que o evangelho exige é que se deixe o pecado e se volte radicalmente a Cristo. Hoje a pregação do arrependimento está desaparecendo dos púlpitos, Tem-se pregado muito sobre libertação e quase nada sobre arrependimento. Mas a ordem de Deus nas Escrituras é: Arrependei-vos! 

 

Não há salvação sem arrependimento. O arrependimento (voltar-se para Deus em tristeza pelo pecado) e o baptismo foram partes importantes da mensagem de João Batista (Mt 3.1; Mc 1.4) e de Jesus (Mt 4.17; 11.20; Lucas 13.3, 5), e permanecem no centro da pregação e do ensino da igreja (Mt 28.18, 19).

 

Às vezes, a fé sozinha é mencionada como a única coisa necessária para a salvação (Jo 3.16; At 16.31; Rm 10.9; Ef 2.8–9), outras vezes apenas o arrependimento é mencionado (Lc 24.47; At 3.19; 5.31; 17.30; 2 Co 7.10, 2 Tm 2.25), e às vezes ambos são nomeados (At 20.21; Mc 1.15). 

 

O baptismo é uma expressão exterior da fé e do arrependimento = conversão (1 Pe 3.21). A pessoa que está sendo baptizada entra num relacionamento de lealdade para com Jesus. Através dessa conversão e baptismo, somos transferidos para a comunidade de Jesus. Entretanto, é o Espírito Santo que leva a efeito a purificação no íntimo, da qual o batismo é o símbolo externo da identificação com Cristo.

 

Portanto, o evangelho que Pedro pregou não é apenas as boas novas daquilo que Jesus fez, mas também daquilo que Ele nos oferece como resultado (2.38–40). Àqueles que responderam a mensagem, Ele promete perdão dos pecados (apagando-lhes o passado) e a dádiva do Espírito (transformando-os em novas pessoas).

 

Finalmente, foi uma pregação que produziu conversões abundantes (2.41). Muitas pessoas pediram para ser baptizadas e naquele dia, houve um acréscimo de quase três mil pessoas à comunidade dos cristãos. Por certo, o pescador galileu lembrou-se das palavras de Jesus: “Eu vos farei pescadores de homens” (Mt 4.19). E, talvez, da declaração do Mestre: “Em verdade, em verdade vos digo que aquele que crê em mim fará também as obras que eu faço e outras maiores fará, porque eu vou para junto do Pai” (Jo 14:12).

 

Ao serem convertidos foram batizados e integraram-se na igreja e perseveraram (At 2.42–47). Criaram raízes. Amadureceram. Foi o Senhor quem acrescentou estas 3000 pessoas (2.47). H. D. Lopes observou que “hoje é difícil manter atualizado o rol de membros de uma igreja. As pessoas entram pela porta da frente e, na primeira crise, saem pela porta dos fundos. Bebem em várias fontes, buscam alimento em diversos pastos. Tornam-se ovelhas errantes, sem referência, sem raízes”.

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Referências: Boor, W. 2002. Comentário Esperança, Atos dos Apóstolos. Curitiba: Evangélica Esperança, p. 39–46. / Carson, D. A., ed. 2018. NIV Biblical Theology Study Bible. Grand Rapids, MI: Zondervan. / Crossway Bibles. 2008. The ESV Study Bible. Wheaton, IL: Crossway Bibles, p. 2082–2083. Kistemaker, S. 2016. Atos, Comentário do Novo Testamento, vl. 1. SP: Cultura Cristã. / Lopes, H. D. 2012. Atos: A Ação do Espírito Santo na Vida da Igreja: Comentários Expositivos Hagnos. SP: Hagnos. / MacDonald, M. 2011. Comentário Bíblico Popular: Novo Testamento. SP: Mundo Cristão. / Marshall, I. H. 1980. The Acts o f the Apostles, an Introduction and Commentary. London: Inter-Varsity Press. Sproul, R. C. 2017. Estudos Bíblicos Expositivos em Atos. SP: Editora Cultura Cristã, p. 30–35. / Stott, J. 2008. A Mensagem de Atos: até os confins da terra. SP: ABU


Pr Alexandre Cosme de Moraes