O capítulo 11 de Hebreus apresenta-nos diversos modelos de fé do
AT. Concluindo essa lista de honra da fé está o retrato de Jesus como o “Autor
e Consumador da fé” (12.2,3). Somos encorajados neste texto a olharmos para
essa grande "nuvem de testemunhas”, e particularmente para Jesus, a fim de
suportarmos a oposição e as provações desta vida (12.1-13).
A natureza da fé (1.1): o que ela é, e o que ela faz?
A palavra fé (pistis), que ocorre 24 vezes somente neste
capítulo, é primeiramente definida (11.1-2), não de forma abrangente, mas de
maneira tal que prepara o argumento da secção como um todo. A doutrina de que o
universo foi formado pela palavra de Deus é apresentada como fundamental para o
tipo de fé que o autor está encorajando (11.3).
As principais palavras no versículo 1 são usadas em diferentes
sentidos na literatura grega. A palavra traduzida como ‘certeza’ (ARA) ou
‘fundamento’ (ARC) é hypóstasis. A palavra traduzida como
‘convicção’ (ARA) é élenchos que significa evidência,
demonstração, prova, e até documento de propriedade ou escritura. Os estudiosos
traduzem Hebreus 11.1 de várias formas. A razão disto é que a palavra-chave na
oração de abertura, hypóstasis, traz consigo pelo menos quatro
nuances de significado que se enquadram perfeitamente no contexto da carta aos
Hebreus.
A primeira maneira de considerarmos hypóstasis é
como a substância. Como lemos na versão King James para Hebreus 11.1: “Ora, a
fé é a substância das coisas esperadas”. O ponto é que a “fé
lança mão daquilo que é prometido e então espera por isso, como algo real e
sólido, apesar de ainda invisível”. Pela fé estas coisas são reais em nossa
experiência. Esta é a ideia de fé enfatizada na segunda metade do versículo 1,
em que lemos que a fé é a “convicção de factos que se não veem”. Assim, fé é a
“substância das coisas esperadas, a prova das coisas não vistas”.
Em Hebreus 11 a esperança é sempre relacionada com a fé (como
enfatizaram Crisóstomo e Calvino). Na medida em que os objetos da esperança
parecem não substanciais, a fé dá-lhes substancialidade, ou melhor, não a dá,
mas é ela mesma sua substância. Por exemplo, a nossa redenção final ainda não
veio, o nosso corpo glorificado ainda não existe substancialmente, mas a
esperança a traz à existência substancial em nossa alma. Paulo fala da
expectativa de fé em Romanos 8: “Porque, na esperança, fomos salvos. Ora,
esperança que se vê não é esperança; pois o que alguém vê, como o espera? Mas,
se esperamos o que não vemos, com paciência o aguardamos” (Rm 8.24–25).
Neste sentido, a fé pode ser vista como uma capacidade concedida
por Deus para transcendermos a percepção natural dos sentidos físicos e
percebermos o que é invisível. A fé torna real para nós coisas que de outra
forma são irreais para a nossa experiência; ela apresenta para o nosso coração
coisas que não podem ser vistas com os nossos olhos.
A segunda maneira de considerarmos hypóstasis é
como um fundamento. A construção da palavra adapta-se a este uso - pela união de
dois termos gregos hypo (debaixo) e thesis (tese).
Uma hipóstasis é algo que fica debaixo de outra coisa, como a
fundação de um edifício. É desta maneira que Agostinho compreendeu Hebreus
11.1, que a fé é o ponto de partida que contém a certeza do fim. Pela fé
começamos o que por fim concluímos possuir e ver. A fé, neste sentido, é um
alicerce firme ou uma confiança firme ou bem fundamentada.
Na terceira possibilidade, hypóstasis pode ser
traduzida como ‘confiança’ ou ‘certeza’, que é como a
maioria das versões a traduz. Esta tradição trata do que é
a fé, a saber, uma confiança ou certeza nas coisas esperadas, mas ainda não
vistas. Não é certeza do desconhecido, mas do invisível.
Como Paulo escreveu: “visto que andamos por fé e não pelo que vemos” (2Co
5.7).
Por fé vivemos como se as coisas fossem diferentes de como
aparecem, por causa do que Deus disse. Noé acreditou que haveria um dilúvio
tendo como evidência nada mais do que a Palavra de Deus. Isto é fé. Pense em
Abraão vivendo como um peregrino por anos a fio, porque ele tinha a cidadania
da cidade futura. Ou pense em Moisés descendo ao Egito em total fraqueza – da
perspetiva do mundo – para exigir que as tribos de Israel fossem libertadas.
Estes crentes nos mostram modelos autênticos de fé. Eles mostram uma confiança
que se traduz em ação apesar de todo o testemunho contrário do mundo. Esta é a
ideia enfatizada no versículo 2, que indica aonde o autor de Hebreus está nos
levando neste capítulo: “Pois pela fé, os antigos obtiveram bom testemunho”. O
que se segue neste capítulo é o registo daqueles homens e mulheres de quem Deus
testifica na Escritura. A fé (pistis) é apresentada aqui como uma
confiança perseverante em Deus que envolve obediência activa (3.18-19); com um
forte sentido de “fidelidade” ou “lealdade” (cf. 10.36-39).
Finalmente, esta palavra pode ser traduzida como garantia ou testemunho. Fé,
neste sentido, é a garantia das realidades celestiais pelas quais esperamos. A
fé é o título de propriedade de coisas que se esperam. É a garantia que nos
assegura a posse das coisas invisíveis e futuras agora mesmo. É um testemunho
interior que provê um antegozo das bênçãos espirituais que por fim iremos
desfrutar plenamente.
Podemos, portanto, parafrasear este versículo nas seguintes
palavras: A fé, por meio de seu caráter activo, dá substância, isto é, expressa
a realidade das coisas que se esperam; demonstra a verdade de coisas ainda não
vistas; reconhece a realidade do invisível e se deixa governar por essa
realidade (2 Coríntios 4.18, 2 Coríntios 5.7).
Duas ressalvas sobre fé, evidência e racionalidade
A Escritura apresenta-nos um sentido, muito particular, em que o
ver e o crer não estão em oposição. RC Sproul (2015) observa que
"o Novo Testamento chama-nos a colocar nossa confiança no evangelho com
base nas afirmações de testemunhas oculares, que relataram nas Escrituras o que
elas viram” (2 Pe 1.16; Lc 1.3). Por exemplo, quando Paulo
defende sua confiança na ressurreição de Cristo, em 1 Coríntios 15, ele apela
para testemunhas que viram pessoalmente Cristo ressuscitado: Cefas, os doze, os
quinhentos, Tiago e todos os apóstolos (vv. 5–7). Em seguida, ele escreve:
“Afinal, depois de todos, foi visto também por mim, como por um nascido fora de
tempo” (1 Co 15.8). Paulo está dizendo: “Creio na ressurreição porque muitas
testemunhas oculares viram Cristo ressuscitado, e eu mesmo o vi”. Portanto, no
Novo Testamento existe sim uma ligação entre fé e ver, por outro lado, em
Hebreus 11, vemos que a natureza essencial da fé é descrita como a convicção de
coisas não vistas.
Fé e razão são coisas distintas, mas não são opostas. A Bíblia
fala de um conhecimento do Deus invisível é-nos revelado por intermédio do que
é visível (Rm 1.20). A própria criação proclama a realidade do Criador (Sl
19.1). Em Hebreus 11.3 diz que “as coisas que são vistas não procedem de coisas
que são vistas”. Deus falou, e a matéria foi criada. Se Deus houvesse trazido o
mundo à existência a partir de matéria preexistente, essa matéria teria exigido
uma causa material, e esse próprio material teria exigido uma causa
material, e assim por diante, em todo o processo regressivo até à eternidade, o
que é um absurdo. Mas a Bíblia diz que o Deus eterno e autoexistente foi a
causa eficaz do universo.
Hebreus 11.3 responde uma antiga questão filosófica: “Por que
existe algo, ao invés de nada?” Pela lógica sabemos que “do nada, nada vem”. O
nada não pode produzir algo. Algo tem de ser autoexistente; algo precisa ter em
si mesmo o poder de Ser para que alguma coisa exista realmente. Quando a Bíblia
diz que Deus criou o cosmos do nada, isso não é o mesmo que dizer que, uma vez
havia nada e, então, a partir do nada, algo surgiu. O ensino bíblico é “No
princípio, Deus…” - autoexistente e eterno em seu ser, e que somente ele tem a
capacidade de criar coisas a partir de nada. Deus, pelo poder de sua palavra,
trouxe à existência o universo (Sproul, 2017).
Implicações práticas
(1) A salvação depende da fé. A fé é o canal pelo
qual recebemos os benefícios da obra salvadora de Cristo. É por meio da fé que
somos salvos, e por falta da fé é que estamos perdidos (Hb 10.36–39). A fé é o
meio pelo qual o crente apodera-se de Cristo e das bênçãos do tempo do fim que
Ele traz. A fé não confia em si mesma, mas no seu objeto. Cristo, o objeto de
nossa fé, é, quem nos salva; e isto Ele faz pela graça mediante a fé. A fé é a
nossa resposta ao que Deus diz em sua Palavra. O que Deus nos diz em Sua
palavra é que confiemos no evangelho de seu Filho e assim sejamos salvos (ver
Rm 5.1).
(2) A fé cristã diz respeito a crer no próprio Deus. Quando
Deus foi a Abraão, que é conhecido como “o pai dos que creem” (Rm 4.11–16), ele
lhe falou sobre o futuro. Ele disse: “Sai da tua terra, da tua parentela e da
casa de teu pai e vai para a terra que te mostrarei …” (Gn 12.1–3). Abraão creu
em Deus. Ele saiu, não sabendo para onde iria, e partiu para uma terra e um
futuro que nunca tinha visto. O Novo Testamento nos diz que ele “aguardava a
cidade que tem fundamentos, da qual Deus é o arquiteto e edificador” (Hb
11.10). Abraão procurava um lugar porque Deus lhe havia dito que lhe mostraria
o lugar. Ele confiou em Deus. Como Abraão, somos peregrinos e forasteiros neste
mundo, e procuramos uma pátria celestial, a cidade cujo arquiteto e edificador
é Deus. Ainda não vimos esta cidade, mas sabemos que ela existe, e a convicção
para isto é a confiança que temos naquele que promete que isto acontecerá. Em
essência, isto é a fé. Não é crer em algo sobre Deus. É crer no próprio Deus
(Sproul, 2013).
(3) A peregrinação da vida cristã é uma jornada de fé. No primeiro
estágio de nossa experiência cristã, recebemos a Cristo e cremos nele para a
nossa redenção, mas toda a peregrinação do cristão está alicerçada e
fundamentada nessa confiança. Essa é a razão por que Deus falou ao profeta
Habacuque: “O justo viverá pela sua fé”. Esta afirmação é citada três vezes no
Novo Testamento (Rm 1.17; Gl 3.11; Hb 10.38), enfatizando que Deus se agrada
quando seu povo vive por confiar nele. Esta expressão “o justo viverá pela sua
fé” é demonstrada por Jesus em seu conflito com Satanás, no deserto, quando
Jesus lembra ao Diabo que o homem não vive só de pão, mas de toda palavra que
procede da boca de Deus (Mt 4.4; Dt 8.3). Dizer que vivemos de todas as
palavras que Deus fala é o mesmo que dizer que vivemos pela fé. Encontramos a
Deus em sua Palavra. Confiamos nossa vida, alma e corpo a ele, ao seu sistema
de valores, à sua estrutura e à sua Palavra (Phillips, 2018).
(4) A fé torna-nos agradáveis a Deus e úteis aos outros nesta
vida. A fé é a raiz de um caráter cristão autêntico. Os nossos
antepassados creram em Deus, confiaram na Palavra de Deus e obtiveram de Deus
bom testemunho (11.2). Sem esta fé, o homem não pode agradar a Deus (11.6). Foi
a fé que colocou estes homens – Noé, Abraão, Moisés – na Bíblia. Nenhum deles
foi perfeito ou sem pecados, mas todos eles serviram ao Senhor pela fé.
Escrevendo sobre Moisés, J. C. Ryle disse: “Ao andar com Deus, um homem só vai
até onde ele acredita, e nada além. A vida dele sempre será proporcional à sua
fé. A sua paz, sua paciência e coragem, o seu zelo e suas obras – tudo será de
acordo com sua fé”. Aquele que crê não apenas será salvo, mas nunca terá sede,
irá superar, irá se estabelecer, andará firmemente sobre as águas deste mundo e
realizará grandes obras.
(5) A fé sustenta-nos em meio à provação e à dificuldade. A Fé
é apresentada em Hebreus 11 como uma perceção espiritual - uma visão do
invisível - como uma evidência de que Deus está agindo (Hb 11. 3, 27) apesar
dos obstáculos. Algumas coisas são invisíveis porque ainda não aconteceram
outras porque não podem ser vistas. Mas a confiança dos
crentes está fundamentada no Deus que se revelou em sua palavra e na pessoa de
Jesus Cristo, cujas promessas se provaram verdadeiras de geração em geração,
numa esperança segura de que Deus “nunca deixará nem abandonará” o seu povo (Hb
13.5). Somente pela fé o povo de Deus de facto encontra forças e coragem para
resistir ao mundo e às provações desta vida. Portanto, precisamos orar como os
discípulos em Lucas 17.5: “Aumenta-nos a fé”.
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Referências: Calvino, J., 2012. Hebreus. São José dos Campos, SP: Editora
FIEL. / Chrysostom, J. 1877. Homilies of
St. John Chrysostom Archbishop of Constantinople in the Epistle of St. Paul,
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Rivingtons. / Hagner, D.A. 2011. Hebreus. Grand Rapids, MI: Baker Books. / Louw,
J.P. & Nida, E. A. 1996. Greek-English lexicon of the New Testament: based
on semantic domains, 1, p.375–376. / Moo, D.J, 2018. The Letters and Revelation
(Em Carson, D. A. ed. Biblical Theology Study Bible NIV. Grand
Rapids, MI: Zondervan, p. 2217. Lopes, H.D. 2018. Hebreus: A Superioridade de Cristo. SP:
Hagnos. / MacDonald, W. 2011. Comentário Bíblico Popular: Novo Testamento.
SP: Mundo Cristão. / Phillips, R.D. 2018. Estudos Bíblicos Expositivos em Hebreus: Como Enfrentar
os Desafios e Armadilhas do Mundo Confiando na Supremacia de Cristo.
SP: Cultura Cristã. / Olyott, S. 2012. A Carta aos Hebreus Bem Explicadinha: E Como Seu
Ensinamento Se Desenvolve na Prática. SP: Editora Cultura Cristã. /
Peterson, D. Hebreus. 2009. (Em Carson, D. A., ed.
Comentário Bíblico Vida Nova. SP: Vida Nova, p. 2012-2029). /
Sproul, R.C. 2013. O Que é Fé?. São José dos Campos, SP: Editora
FIEL. / Sproul, R.C. 2017. Somos Todos Teólogos: Uma Introdução à Teologia
Sistemática. São José dos Campos, SP: Editora FIEL. / Taylor, W.C.
2011. Dicionário do Novo Testamento Grego. p. 233.
Pastor
Leonardo Cosme de Moraes