Justificados pela fé


 Romanos 5.1-11

A doutrina da justificação pela fé somente é o princípio material da reforma. A teologia da Reforma nasceu da luta pela doutrina da justificação pela fé. O reformador Martinho Lutero definia a justificação pela fé como “o artigo mediante o qual a igreja mantêm-se de pé ou cai”. Lutero insistia que o homem recebe a justiça salvadora de Deus quando apropria-se da graça de Deus pela fé somente. Ele viu a doutrina da justificação, “pela graça somente, através da fé somente, por causa de Cristo somente”, como o âmago do Evangelho.

 

“O Evangelho como Justiça de Deus para todo o que crê” é o tema central da Carta aos Romanos (Rm 1.17). Inicialmente, Lutero entendia essa justiça como o atributo da imparcialidade de Deus no julgamento dos pecadores. Mas tarde, porém, ele compreendeu que Paulo estava a falar da justiça de Deus como dádiva para a justificação dos pecadores pela fé em Cristo. Por outras palavras, Paulo esta a falar das boas novas da justificação pela graça de Deus.


O nosso texto nesta manhã está estruturado em torno de uma secção quiástica (Rm 5.1-8.39). O tema da secção é: “se justificados, então certos da salvação final”, que é expresso no início (Rm 5.1-11) e no final (Rm 8.18-39) desta secção.


A 5.1-11 - Certeza da glória futura (esperança e sofrimento).

     B 5.12-21 - Base para essa certeza na obra de Cristo.

          C 6.1-23 - Liberto do poder do pecado.

          C’ 7.1-25 - Liberto do poder da lei. 

     B’ 8.1-17 - Base para essa certeza na obra de Cristo, mediada pelo Espírito.

A’ 8.18-39, Certeza da glória futura (esperança e sofrimento).


inclusio desta secção é confirmado pelos “temas gémeos de esperança e sofrimento, que foram justapostos em Romanos 5.3,4, tornam-se os temas dominantes de Romanos 8.18-39”. No centro da secção, Paulo trata de dois “poderes” que podem ameaçar essa libertação futura do fiel justificado, a saber, o pecado (Rm 6) e a lei (Rm 7), mostrando em cada um desses casos que os cristãos tinham sido libertos do domínio desses poderes. 


O apóstolo Paulo já havia deixado claro que a justificação é um ato exclusivo de Deus (3.21-31). Também argumentou que a justificação pela fé não é uma novidade, mas uma verdade já presente no VT, e demonstrada na vida de Abraão, o progenitor da nação Israelita e pai de todos os que crêem, tanto judeus como gentios (Rm 4). Agora, Paulo mostrará os benefícios que decorrem da justificação (Rm 5.1-11). Sua ênfase é a glória futura (Rm 5.2) e a salvação final (Rm 5.9,10) por meio de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ele explica santos em Roma que todos os que foram justificados em Cristo estão livres da ira de Deus (Rm 5), livres do poder do pecado (Rm 6), livres da condenação da lei (Rm 7) e livres do domínio da morte (Rm 8). 


A necessidade da justificação (Rm 1-3). Deus é santo, o homem é pecador, logo nenhum homem pode ser justo aos olhos de Deus. Pode o pecador justificar-se diante de Deus? Porventura pode o etíope mudar a sua pele, ou o leopardo as suas manchas? (Jr 13.23).


O padrão para entrar no céu é a perfeição e todo o homem é imperfeito, logo é impossível ao homem entrar no céu por seus esforços. Quem obedecer a lei, pela lei viverá (Rm 10.5; Gl 3.12). Mas todos pecaram. Não há justo, nem um sequer (Rm 3.10-23). Logo, ninguém jamais poderá entrar no céu por seus próprios méritos.


Para o homem entrar no céu é preciso que Deus o justifique e para Deus justificá-lo precisa ainda continuar justo (Rm 3.24-28). Como Deus pode ser justo e ainda justificar o pecador? Como Deus pode justificar o pecador sem abrir mão da sua justiça? “A misericórdia de Deus não é uma paixão ou emoção que possa sobrepujar a Sua justiça. Se fosse assim, essa misericórdia seria um defeito de Deus que o tornaria fraco e inconsistente consigo mesmo, e inadequado para ser um juiz.” (Jonathan Edwards).


A justiça violada precisa ser satisfeita. Deus é santo e não pode reagir favoravelmente ao pecado. Deus não pode fazer vistas grossas ao pecado. A Bíblia diz que “o Senhor é tardio em irar-se, mas grande em poder, e ao culpado não tem por inocente ...” (Naum 1.3). “Ele tão puro de olhos que não pode ver o mal” (Hc 1.13). "A alma que pecar, essa morrerá." (Ez 18.4). 


Enfim, precisamos ser justificados pela graça de Deus pois (1) todos somos pecadores (Rm 3.23; Sl 51.5), (2) e todos vamos ter que comparecer diante do tribunal de Deus (Rm 3.23; Sl 51.5). Seremos julgados por Deus (Rm 14.10; 2Co 5.10) por nossas palavras (Mt 12.36); por nossas obras (Ap 20.12); por nossas omissões (Tg 4.17); e por nossos pensamentos, desejos e propósitos (Mt 5.28; At 8.22).


O que é justificação? A justificação é um ato gracioso de Deus no qual Ele declara, sobre a base da justiça perfeita de Cristo, que todas as demandas da lei estão satisfeitas com respeito ao pecador. No Novo Testamento, o sentido mais comum do verbo justificar (dikaiou) é “declarar justo” (p. ex. Rm 4.5). É um termo legal que foi tomado emprestado dos tribunais. É exatamente o oposto de “condenação”. Condenar é declarar uma pessoa culpada; “justificar” é declará-la inocente ou justa (Rm 8.1).


A base dessa declaração legal é a imputação da justiça de Cristo a nosso favor (Rm 4.5). Somos justificados por fé nas obras executadas a nosso favor por Cristo. Logo, a justificação não é algo que Deus faz em nós, mas por nós. A justificação envolve uma mudança de status, não de uma mudança de natureza. Somos declarados justos não com base num processo futuro e gradual de cura, mas com base na obra concluída de Cristo. A justificação é um ato e acontece uma única vez. Não há graus na justificação. O homem é justificado por completo ou, então, não é justificado. 


O novo status dos crentes resulta de sua real identificação com Cristo nos eventos redentores de sua crucificação, sepultamento e ressurreição. Não se trata de uma ficção legal, mas de um relacionamento real. Somos salvos pela fé em Cristo (ele morreu por nós) e vivemos pela fé em Cristo (ele vive em nós). A cruz de Cristo foi real e o castigo que ele recebeu a nosso favor foi também igualmente real.


A justificação é mais do que perdão (Rm 5.6-8). Deus depositou os nossos pecados na conta do Seu Santo Filho. “Àquele que não conheceu pecado, o fez pecado por nós; para que nele fôssemos feitos justiça de Deus.” (2 Co 5.21). O castigo que nos trás a paz estava sobre Ele. Jesus foi feito maldição por nós. Ele sofreu o castigo da lei que deveríamos sofrer. Ele carregou no seu corpo os nossos pecados sobre o madeiro. Quando os nossos pecados foram lançados sobre ele, Ele deu um grande brado na cruz: “está consumado - está pago!” (Jo 19.30). Já nenhuma condenação há sobre aqueles que estão em Cristo Jesus (Rm 8.1). Isso é justificação!


Deus não só pagou a nossa dívida. Ele nos tornou-nos ricos. Como escreveu Paulo: “Porque já sabeis a graça de nosso Senhor Jesus Cristo que, sendo rico, por amor de vós se fez pobre; para que pela sua pobreza enriquecêsseis.” (2 Co 8.9). Deus não só perdoou os nossos pecados, mas depositou a infinita justiça de Cristo em nossa conta. Agora, Deus olha para você e não vê o seu pecado, mas a infinita justiça do Seu Filho depositada em sua conta (Fl 3.9). 


A base da justificação não são nossas obras, nem nossa fé, nem mesmo nosso exemplo, mas a obra expiatória de Cristo na cruz em nosso lugar e favor. Por meio da sua perfeita obediência, Cristo satisfez as exigências da Lei de Deus. Por sua submissão à morte expiatória na cruz, ele satisfez as exigências de Deus contra os transgressores da Lei (2 Co 5.21). Assim, a justiça pela qual somos salvos pertence a outro. Como diz a Escritura: “foi entregue à morte por nossos pecados e ressuscitado para nossa justificação” (Rm 4.25 NVI, v. tb. 1.4).


A pessoa justificada “não trabalha, porém crê naquele que justifica o ímpio” (4.5). Se os ímpios chegam a ser justificados, não pode ser por obras ou fé como obra. É a justificação por Jesus Cristo somente. 


A igreja romana ensina que somos salvos pelas obras que vêm da graça. Ou seja, não é a graça e sim as obras que vêm dela que salva. Se uma pessoa crê que a graça a salva, ela é protestante e está do nosso lado. A justiça de Cristo que os romanistas afirmam que justifica não é a justiça pessoal de Cristo imputada aos crentes. Os papistas referem-se não à justiça pessoal de Cristo e sim a justiça pessoal de crente, que ele realiza pela graça de Deus. É uma justiça imputada versus uma justiça infundida. É a realização de Cristo versus a realização do cristão. É uma dádiva de Deus versus uma realização do homem. Enfim, é a salvação pela fé versus a salvação pelas obras. 


O protestante confia em Cristo para salvá-lo e o papista confia em Cristo para ajudá-lo a salvar-se. Mas, como o Espírito de Deus coloca em Romanos 4.16 (NIV): “… a promessa vem pela fé, para que seja de acordo com a graça …” Você não poderá ser salvo somente pela graça a não ser somente pela fé. Se é uma salvação baseada em obras que vêm da graça, não é baseada na graça; e sim nas obras cristãs que vêm pela graça. 


A fé é a causa instrumental da justificação. A fé salvadora é uma fé viva, operosa, que gera boas obras para a glória de Deus. Porém, Deus declara-nos justos aos seus olhos no momento em que a verdadeira fé está presente, antes que qualquer obra brote de nossa fé. A justificação com Deus é à parte do mérito das obras.


Nós não somos justificados com base na fé, mas com base no sacrifício perfeito, definitivo e eficaz de Cristo. Mas pela fé nós nos apropriamos da justificação. A fé é a união com Cristo que é nossa justiça (1 Coríntios 1.30). Nossa justiça não resulta da justiça Dele, ela é a justiça Dele (1 Coríntios 1.30). A nossa fé apenas recebe a Cristo e, com Ele, todos as suas dádivas.


Cristo é a condição necessária e suficiente da fé cristã (At 3.16; Hb 12.2; 2Pe 1.1). É justamente porque Cristo fez tudo que ele possibilita ao pecador a fé e uma resposta salvadora a Deus. Em suma, o meio objetivo da justificação é a obediência fiel de Cristo a caminho da cruz (1.4; 2.21; cf. tb.: Rm 5.15-20 e Fp 2.6-11). E a resposta humana subjetiva de apropriação é a confiança na fidelidade de Jesus Cristo, sua obra fiel ao Pai e em nosso lugar e favor.


Os frutos da justificação (Rm 5.1-2): (1) Paz com Deus - 5.1. Cristo morreu e pelo seu sangue reconciliou-nos com Deus. Agora não somos mais réus, nem inimigos de Deus. Estamos quites com as demandas da lei divina. (2) Graça – v. 2 - Por meio de Cristo temos acesso a esta graça na qual estamos firmes. Somos aceitos, somos apresentados como filhos, como herdeiros, como cidadãos do céu. (3) Glória – v. 2 - O fiel justificado gloria-se na esperança da glória de Deus. Ele está seguro de sua salvação (p. ex.: Paulo em 2Tm 4.6-8).


A justificação não apenas prepara-nos para o céu, mas também para enfrentarmos as pressões da vida (Rm 5.3-5).

(1) Nos gloriamos nas próprias tribulações, sabendo que Deus está trabalhando em nós, esculpindo em nós a imagem do seu Filho (Rm 8.28). 


(2) Sabendo que a tribulação produz perseverança – v. 3. A tribulação é pedagógica. Ela produz paciência vitoriosa nas circunstâncias difíceis. As grandes lições da vida nós as aprendemos no vale da dor. Sl 119.71: “Foi-me bom ter sido afligido, para que aprendesse os teus estatutos.” Primeiro a prova, depois a lição. Primeiro a dor, depois o aprendizado.


(3) A perseverança produz experiência – v. 4. Neste contexto a palavra experiência provavelmente significa um caráter provado e aprovado como resultado de um teste. Não podemos ter uma fé de segunda mão. Precisamos ter a nossa própria experiência com a graça salvadora de Deus. A justificação deve ser uma realidade em nossa vida.  


(4) A experiência produz esperança – v. 5 - Está não é uma esperança vaga, vazia. É uma esperança segura. Como saber que esta esperança não é uma ficção? Porque o amor de Deus é derramado em nossos corações (Rm 5.5). Se nada sobrar, se tudo se perder. Ainda temos Deus. Gloriamo-nos Nele (5.11; cf. tb. Hc 3.17; Rm 8.31-39). 

___________

Referências: Hendriksen, William. Romanos. Comentário do Novo Testamento. SP: Cultura Cristã, 2011, p. 212–221. / Kistler, Don, ed. Justificação pela Fé Somente: A Marca da Vitalidade Espiritual da Igreja. SP: Cultura Cristã, 2013. / Lopes, Hernandes Dias. Romanos: O Evangelho Segundo Paulo: Comentários Expositivos Hagnos. SP: Hagnos, 2010, 201–217. / Moo, Douglas J. The Epistle to the Romans: the new international commentary on the New Testament. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans Publishing, 1996, p. 290-314. / Reeves, Michael e Chester, Tim. Por que a Reforma ainda é importante? São José dos Campos, SP: Fiel, 2017, p. 21-40. / Ridderbos, Herman. A teologia do apóstolo Paulo: a obra definitiva sobre o pensamento do apóstolo dos gentios. SP: Cultura Cristã, 2004. / Schreiner, Thomas R. Romans: Baker Exegetical Commentary on the New Testament. Grand Rapids, Michigan: Baker Academic. Eerdmans Publishing, 2013, (Rm 5.1–11).

 

Pr. Leonardo Cosme de Moraes