O evangelho não é apenas a maneira pela qual entramos no reino, mas a maneira pela qual vivemos na condição de participantes do reino. O evangelho é a maneira pela qual Cristo transforma as pessoas, igrejas e comunidades. Como observou Tim Keller, “o evangelho cria uma nova dinâmica radical para o crescimento pessoal, para a obediência, para o amor”.
Na abertura de suas cartas, Paulo normalmente oferece uma oração de ação de graças por sua audiência (Rm 1.8; 1 Co 1.4; Fp 1.3). Mas com os gálatas, não há motivo para ações de graças; pois eles estavam afastando-se do evangelho da graça por outro evangelho. Aqui Paulo limita-se a dizer: “Maravilho-me” (“estou admirado”, “surpreso” v. 6). Esta expressão de espanto, em termos retóricos, pode ser interpretada como o início da secção de repreensão da carta.
O que despertou estes sentimentos em Paulo? Em primeiro lugar, Paulo ficou admirado porque aqueles cristãos estavam a deixar-se levar por um falso evangelho (1.7). Em segundo lugar, o alvo principal de sua fúria são aqueles que queriam perverter o evangelho de Cristo (v. 7b). Paulo invoca a maldição escatológica de Deus sobre eles (v. 9). A palavra “anátema” aqui refere-se a colocar alguém sob o julgamento de Deus: Deus vai punir aqueles que distorcerem a mensagem do evangelho de Cristo.
Ao percorrermos a carta, vemos que um grupo de mestres judeus (missionários rivais) vinha ensinando aos cristãos gentios que eles eram obrigados a cumprir os costumes culturais judaicos da Lei Mosaica – em relação a circuncisão e às demais leis cerimoniais para serem plenamente aceitos por Deus, e como requisitos para serem membros do povo da aliança de Deus (cf. 5.2-6; 6.12-13; 2.3-5). Entretanto, Paulo diz que esse ensino judaizante (2.14) consiste numa rejeição completa da suficiência e da exclusividade de Cristo.
Portanto, esses intrusos nas igrejas da Galácia não estavam a proclamar o evangelho verdadeiramente, mas estavam a alterar o imutável e único evangelho de Cristo (1.7; 5.10, 12). Eles estavam a seduzir os gálatas a voltarem-se da luz do verdadeiro evangelho para as trevas de um falso evangelho.
A linguagem forte usada por Paulo, demonstra que ele não considera estes intrusos como crentes, pois eles pregam um evangelho diferente. Paulo também está zangado com os próprios cristãos da Galácia, e os adverte de que estão a afastar-se do Deus que os chamou à graça de Cristo (v. 6b).
Quem é Paulo para escrever a estes cristãos desta maneira? Paulo é um apóstolo (1.1): um homem “enviado” com autoridade divina imediata. A frase “não da parte de homens, nem por homem algum” deixa claro o carácter exclusivo dos primeiros apóstolos. Embora os actuais ministros da palavra recebam sua chamada de Deus (a razão última de sua chamada, fundamentada na Escritura), são separados por intermédio de outros ministros humanos, ou por meio da eleição de uma congregação. O apóstolo Paulo, no entanto, foi comissionado e ensinado directamente pelo próprio Senhor Jesus ressurrecto (At 9.1-19). Ele recebeu autoridade absoluta de Cristo e que ele escrevia era Escritura inspirada pelo próprio Deus.
Nos versículos 8 e 9, Paulo informa que foi enviado com uma mensagem divina específica: o evangelho. Seu ensinamento divino serve de padrão para julgar quem é ORTODOXO e quem é HEREGE, como ele diz no versículo 9.
Na abertura da carta, Paulo apresenta um esboço da mensagem central do evangelho:
A condição espiritual da humanidade pós-queda: impotente e perdida. É o que pode ser subentendido pelo uso da palavra “livrar” no versículo 4. Não se pode livrar pessoas a menos que estejam cativas e em condição de impotência! A condição espiritual do homem, por causa do pecado, é de inabilidade total. Nada do que somos ou fazemos nos salva. Portanto, é de um libertador que nós mais precisamos.
Jesus é o libertador, que “se entregou a si mesmo pelos nossos pecados” (v.4a). A palavra “pelos” significa “em benefício de” ou “no lugar de”. A morte de Cristo foi substitutiva. Ele não comprou apenas uma “segunda chance”, dando-nos nova oportunidade. Ele fez tudo que precisávamos fazer e deveríamos ter feito, mas não conseguimos. A expiação realizada por Cristo é eficaz! Seu sacrifício foi completo, perfeito, suficiente, definitivo.
Deus Pai aceitou a obra de Cristo em nosso benefício ressuscitando-o “dentre os mortos” (v.1) e dando-nos a “graça e paz” (v. 3) que Cristo conquistou por nós. Tudo isso foi feito por Sua graça soberana – não por algo que tenhamos feito, mas “segundo a vontade de Deus nosso Pai” (v. 4d). Não há nenhum indicativo de qualquer outra motivação ou causa para a missão de Cristo, exceto a soberana vontade de Deus. Não há nada em nós que mereça a salvação. Portanto, o único que recebe “glória para todo o sempre” é Deus (v. 5).
Por essa razão, o apóstolo Paulo condena qualquer ensino que não seja baseado no facto de que: (a) Pecamos demais para contribuir para nossa salvação (precisamos de uma libertação completa). (b) Somos salvos pela fé na obra de Jesus Cristo – a “graça de Cristo” – e mais nada.
Contudo, os opositores de Paulo nas igrejas da Galácia estavam pervertendo a verdade do evangelho. E Paulo diz que qualquer mudança no evangelho significa transformá-lo em algo “que, na realidade, não é o evangelho” (cf. v. 7, NVI).
Os cristãos são chamados “pela graça de Cristo” (v. 6). Deus chamou-nos e aceitou-nos de pronto, apesar de não merecermos. No versículo 7, Paulo diz que qualquer ensinamento que acrescente a manutenção da lei cerimonial à fé em Cristo “perverte” o evangelho. Logo, se acrescentarmos qualquer coisa a Cristo como um requisito para sermos aceitos por Deus – se começarmos a dizer: para sermos salvos, precisamos da graça de Cristo mais alguma coisa -, revertemos por completo a ordem do evangelho, anulando-o e esvaziando-o.
Hoje em dia muitos abraçam o pluralismo (que a salvação pode ser obtida por meio de todas as religiões) ou o inclusivismo (que as pessoas podem ser salvas por meio de Cristo, embora nunca tenham ouvido o evangelho). Num mundo onde a tolerância é valorizada e a rigidez das gerações anteriores é rejeitada, estamos inclinados a ir para o outro extremo. Os anátemas de Paulo, portanto, revelam o quanto nos afastamos do testemunho bíblico, indicando que nossas igrejas não equilibraram corretamente as doutrinas da santidade de Deus e seu amor.
Muitos ensinam que não tem muita importância aquilo que uma pessoa crê, desde que seja uma pessoa amorosa e boa. Essa visão ensina que todas as pessoas boas, independentemente de sua religião (ou falta dela), encontrarão a Deus. Embora a ideia pareça revelar uma mente aberta, ela é intolerante para com a graça. Pois se o caminho das boas obras é suficiente para se chegar a Deus, então a morte de Jesus não era necessária; basta a virtude. O problema é que isso contradiz o evangelho que convida “tanto maus quanto bons” ao banquete divino (Mt 22.10). Se as pessoas “boas” podem conseguir a vida eterna por si mesmas, então a “glória para todo o sempre” (v.5) é transferida para elas por serem boas o suficiente para o céu. Todavia, o evangelho desafia as pessoas a verem seu pecado radical. Sem esse senso do próprio mal, deixaremos de compreender a glória da graça de Deus; e o quanto Deus é glorificado pela presença de qualquer pessoa no céu.
Ademais, se deixarmos de proclamar que há apenas um nome pelo qual podemos ser salvos (Atos 4.12) e que os seres humanos vêm a Deus somente por meio de Jesus Cristo (João 14.6), sem dúvida daremos garantia de salvação às pessoas que estão caminhando para o julgamento final.
Paulo apresenta o conteúdo do evangelho como um padrão para julgar todas as afirmações de verdade, sejam elas externas (de mestres, escritores, pregadores, líderes institucionais ou mesmo ministros ordenados em uma hierarquia eclesiástica) ou internas (sentimentos, sensações, experiências). Esse padrão é o evangelho que ele, junto com os outros Apóstolos receberam de Cristo e ensinaram, o qual é encontrado nessa carta e em todo o restante da Bíblia. “Ainda que nós [...] ou um anjo [...] vos pregue um evangelho diferente [...] seja maldito” (v. 8).
No versículo 8, Paulo está dizendo que até sua autoridade apostólica deriva da autoridade do evangelho, não o contrário. Ele diz aos gálatas para avaliarem tanto seu apostolado quanto seu ensino à luz do evangelho bíblico. A Bíblia julga a igreja; a igreja não julga a Bíblia. A Bíblia é que cria e fundamenta a igreja; a igreja não cria nem fundamenta a Bíblia. A igreja e sua hierarquia devem ser avaliadas pelo crente à luz do evangelho bíblico, considerando-o o padrão para avaliar todas as afirmações de verdade. Tampouco nossa experiência pessoal é o padrão de avaliação da verdade. Não julgamos a Bíblia por nossos sentimentos ou convicções; julgamos nossas experiências pela Bíblia.
Portanto, se um anjo aparecesse literalmente perante uma multidão de pessoas e ensinasse que a salvação é obtida pelas boas obras (ou qualquer outra coisa, exceto somente por Cristo, por intermédio da fé somente), deveríamos considerá-lo anátema (v. 8).
Por que o evangelho é algo acerca do qual precisamos ser inflexíveis e radicais?
1. Porque abandonar a teologia do evangelho é abandonar Cristo em pessoa (v. 6). Uma diferença na sua compreensão do evangelho leva a uma diferença em sua compreensão de quem é Jesus – e isso significa que é questionável se de facto você o conhece.
2. Porque outro evangelho não é de facto evangelho (v. 7). O evangelho não pode ser alterado, nem de leve, sem se perder. A mensagem do evangelho é: você é salvo pela graça (Sola Grafia) por meio da obra de Cristo (Solus Christus), e nada mais. Quando você faz qualquer acréscimo a isso, perdeu tudo de uma vez. No momento em que revisa o evangelho, você o reverte (Tim Keller).
3. Porque outro evangelho produz maldição (v. 8, 9, 10). O que está em jogo é algo muito sério: nosso conhecimento de Cristo, a verdade do evangelho e o destino eterno das almas. É por isso Paulo adotou uma linguagem tão severa. A franqueza rude de Paulo é por amor. Ele é um apóstolo que ama o Senhor, o evangelho do Senhor e o povo do Senhor.
4. Porque devemos temer a Deus em vez das pessoas. Não devemos modificar a mensagem do evangelho para agradar as pessoas (1.10). É muito melhor ser um escravo de Cristo do que ser escravo das opiniões humanas sobre nós. A razão de muitos não crerem em Jesus foi porque eles almejaram a glória e o louvor das pessoas mais do que a glória de Deus (João 5.43-44; 9.22).
No capítulo 12, João resume o ministério público de Jesus: “Ainda assim, muitos líderes dos judeus creram nele. Mas, por causa dos fariseus, não confessavam a sua fé, com medo de serem expulsos da sinagoga; pois preferiam a aprovação dos homens do que a aprovação de Deus.” (Jo 12.42-43). Entendo que esses versículos estão a ensinar que tais pessoas não tinham fé salvadora genuína (cf. João 2.23-25). Novamente, o motivo do fracasso em seguir a Jesus foi o medo dos seres humanos.
A palavra de Deus diz que precisamos ser corajosos. O Senhor Jesus advertiu-nos que “qualquer que de mim e das minhas palavras se envergonhar, dele se envergonhará o Filho do homem, quando vier na sua glória, e na do Pai e dos santos anjos.” (Lc 9.26).
Confie na graça de Deus revelada no evangelho. Creia que pela graça de Deus, por meio de Cristo, pelo poder do Espírito Santo, você será libertado do medo das pessoas.
Fontes:
Keller, T. 2015. Gálatas para você. São Paulo: Edições Vida Nova (principalmente).
Schreiner, T.R. 2010. Galatians. Grand Rapids, MI: Zondervan.
Witherington, B., III. 1998. Grace in Galatia: a commentary on St. Paul’s Letter to the Galatians. Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans Publishing Co.