1João 4.7-12
Estes versículos descrevem o que é o amor perfeito e de que modo ele esta disponível aos homens. Esta passagem também fornece um critério visível pelo qual aqueles que são de Deus podem ser identificados.
Esta é a última secção de João sobre o amor (cf.: 1Jo 2.7-11; 3.10-14). João aqui retoma a questão do discernimento (4.1-2), apontando que aqueles que receberam o Espírito de Deus (4.13) são aqueles que receberam o amor de Deus por meio da fé em Cristo, que veio em carne (4.2).
Três pontos principais são claros nesta passagem: (1) Deus é o único que tem autoridade para definir o que é “amor”. (2) O amor de Deus por nós é supremamente expresso na cruz de Jesus Cristo. (3) Aqueles que receberam o amor do Pai irão, em virtude de sua relação espiritual com o Pai, manifestar o amor pelos outros em suas vidas.
O amor originou-se em Deus (4.7-8). O amor, como os cristãos entendem, não é uma realização humana; é de origem divina, um presente de Deus. Nós amamos porque Deus amou-nos primeiro (4.19).
A história humana testemunhou muitas coisas motivadas pelo amor a Deus, algumas delas actos horrendos de maldade. Mesmo o “amor” mais sincero e bem-intencionado por Deus, que tem sua origem apenas nas emoções e sentimentos humanos, não é o tipo de amor de que fala João. O tipo de amor de que fala João não tem origem no ser humano, mas vem do Espírito de Deus.
As definições de amor e moralidade não podem originar-se do pensamento humano separado de Deus, pois é apenas o próprio Deus que, por sua natureza, está qualificado para definir tal verdade fundamental. Deus, como o criador e juiz, é o único que tem autoridade para definir o que é amor (4.7-8, 10, 16). Mas sua definição é tão diferente da do mundo que aqueles que preferem sua própria definição, mais voltada para o próprio interesse, muitas vezes a rejeitam.
Por causa de nossa natureza humana pecaminosa e caída, perdemos a capacidade de definir, e muito menos de praticar, o amor como fomos criados para fazer. E assim o Novo Testamento associa intimamente o amor a Deus com moralidade. O apóstolo João diz-nos que amar a Deus significa guardar seus mandamentos o que envolve como tratamos uns aos outros: “Nisto conhecemos que amamos os filhos de Deus, quando amamos a Deus e guardamos os seus mandamentos.” (1 Jo 5.2). “E o amor é este: que andemos segundo os seus mandamentos. Este é o mandamento, como já desde o princípio ouvistes, que andeis nele.” (2 Jo 1.6).
Deus é amor (4.8). Isso significa mais do que Deus é amoroso ou que Deus ama às vezes. Ele ama não porque encontra objetos dignos do seu amor, mas porque amar faz parte da sua natureza. Amar não é apenas mais uma ação de Deus, como governar. Em vez disso, toda atividade de Deus é atividade amorosa. Portanto, mesmo o julgamento de Deus e suas acções punitivas são fundamentadas por sua natureza amorosa.
João não está dizendo que Deus é apenas amor (ele tem vários outros atributos), nem que o amor é Deus (uma declaração para a qual não há suporte bíblico). Aqui é como em duas outras fórmulas joaninas que descrevem Deus, “Deus é luz” em 1 João 1.5 e “Deus é Espírito” em João 4.24.
Esta representação de Deus nas cartas de João requer uma compreensão de Deus como um ser pessoal, não apenas um "poder superior" ou uma abstração definida humanamente. Se Deus “é” amor, então foi amor desde sempre e desde a eternidade. Havia amor eterno entre as pessoas da Trindade, mesmo antes de o mundo ser criado (João 17.24), e o amor de Deus é a fonte final de qualquer amor que os cristãos são capazes de demonstrar (1 Jo 4.11, 12, 19).
Todo aquele que ama é nascido de Deus e conhece a Deus (4.7). Quando tomada sem a definição de amor de Deus, esta declaração de João pode ser mal-empregada para justificar quase tudo que o coração humano pode imaginar. O mundo está cheio de amor falso. Muitas pessoas tentam justificar relacionamentos românticos ilícitos em nome de um “amor” que é definido por emoções e ideias meramente humanas, por mais poderosas que sejam. Os pais e cônjuges podem confundir a necessidade de controlo com amor. Alguns podem tentar justificar a eutanásia ou o aborto por alguma falsa definição de amor. Mas o amor é o oposto do pecado, e qualquer coisa praticada que a Bíblia define como pecado não pode ser amor autêntico. Portanto, Não é todo aquele que ama da maneira que quiser que é nascido de Deus, mas todo aquele que ama como Deus define o amor (4.8).
O verbo “foi gerado” está no tempo perfeito, denotando que o novo nascimento precede o amor e o conhecimento. Este ensino não apenas serve para motivar os relacionamentos correctos dentro da comunidade, mas também para fornecer um critério de discernimento a respeito daqueles que não são realmente membros dela. Esta passagem apresenta-nos então como alguém pode saber que conhece a Deus, e também como identificar aqueles que não são verdadeiramente parte da comunidade de crentes (1 Jo 2.19).
O amor é apresentado aqui como uma consequência, não uma pré-condição para nascer de Deus (cf. 4.8-11). É preciso ser nascido de Deus para verdadeiramente poder amar. Não podemos realmente, e com um coração sincero, amar os irmãos a menos que o Espírito aplique seu poder em nós (Rm 5.5).
O verdadeiro cristão é aquele que ama (4.7). Tentar separar a fé do amor é o mesmo que tentar remover o calor do sol. Não há conhecimento de Deus onde não há amor. Aqueles que nasceram de Deus também são definidos por seu amor pelos outros - tal pai, tal filho, como diz o ditado. Se Deus é amoroso, aqueles que afirmam conhecê-lo como seu Pai também devem ser amorosos.
Se todo aquele que ama foi gerado por Deus e conhece a Deus, o inverso também é verdadeiro: quem não ama não conhece a Deus. Esta é a terceira vez que João menciona aquele que não ama. Tal pessoa não é de Deus (3.10), permanece na morte (3.14), e aqui, não conhece a Deus. Por outras palavras, tal pessoa não tem vida eterna, pois a essência dessa vida é o conhecimento de Deus e daquele a quem ele enviou: “E a vida eterna é esta: que te conheçam, a ti só, por único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste.” (João 17.3).
Portanto, a falha em amar não é simplesmente uma falha ética, mas significa que a pessoa permanece nas trevas do pecado, à parte da salvação. Aqueles que falham em amar estão fora da comunidade cristã e não têm um testemunho verdadeiro de Deus, pois não têm conhecimento verdadeiro de Deus. O conhecimento pessoal de Deus e o amor pelos outros como Deus o define são inseparáveis. A exortação de João, portanto, exige implicitamente um auto-exame.
O amor de Deus manifestou-se em seu filho (9-10). A morte violenta de um homem executado como um criminoso sedicioso seria o último lugar que se esperaria ver uma demonstração de amor, mas é exatamente onde o NT o localiza. O amor de Deus foi manifestado no envio de seu único Filho ao mundo, para ser o sacrifício propiciatório pelos nossos pecados.
Deus expôs à morte seu único Filho em nosso favor (Rm 8.32). Ele amou-nos antes mesmo que nascêssemos (Ef 1.4-5), e também quando, pela depravação da natureza, nossos corações estavam afastados dele e não deixavam-se influenciar por nenhum sentimento piedoso (Rm 5.8).
O juízo do pecado na cruz foi o exemplo supremo do amor de Deus, pois ele derramou a sua ira sobre o seu Filho amado que estava no lugar de pecadores (Rm 5.8; 2Co 5.21). A cruz de Cristo é onde o amor une as demandas da justiça de Deus e de sua misericórdia (3.16; Rm 8.32; Ef 5.25).
Para percebermos grandeza do amor de Deus precisamos compreender que somos pecadores, e assim, como objetos da ira de Deus (Jo 3.36, Ef 5.1-6, Rm 1.18, 2.5-8; Ef 2.3), e ainda assim como aqueles por quem Cristo morreu. Deus estava irado connosco por causa de nossos pecados e não podia reconciliar-se connosco até que Cristo removesse nossa culpa (Jo 3.36). Assim, por causa da cruz de Cristo, podemos experimentar a plenitude do amor de Deus. Este é um dos paradoxos retumbantes do NT - de que é o amor de Deus que desvia a ira de Deus de nós. É precisamente neste desvio da ira que vemos o que é o verdadeiro amor (cf.: Is 53.6, 10).
A cruz de Jesus Cristo é o amor de Deus estendido através do abismo que prendeu-nos no lado do inferno, separados de Deus e presos em nosso pecado. Não há outra ponte pela qual possamos passar da morte para a vida (João 5.24).
Jesus Cristo é chamado o Filho único de Deus (4.9). A tradução tradicional “unigênito" é uma interpretação introduzida pela tradução latina de Jerônimo. Mas o termo monogenēs, na língua grega, enfatiza a singularidade de Cristo - a relação singular do Deus Filho com o Deus Pai, sua preexistência e sua natureza divina. Deus tem muitos filhos, mas Jesus não é apenas um deles. Ele é único, o Filho da mesma essência de Deus Pai, que estava com Deus e era Deus (João 1.1).
A singularidade de Jesus Cristo é fundamental na teologia cristã. O cristianismo não é baseado no sacrifício humano, pois Deus não escolheu um de seus filhos humanos para ser sacrificado em nome dos outros. O próprio Deus Filho entrou na humanidade na pessoa de Jesus, fazendo de Jesus um ser humano único, excecionalmente qualificado para pagar a pena pelos pecadores.
João não cita o nome de Jesus ou Cristo; ao invés disso, ele usa a palavra Filho para chamar a atenção sobre o relacionamento íntimo entre Pai e Filho. Deus, o Pai, enviou o seu único Filho ao mundo (Jo 1.18; 3.16,18; cf. tb. Hb 11.17). O Pai o enviou ao mundo como a maior dádiva já oferecida (Jo 17.3), para que todo aquele que Nele crê não pereça mas tenha a vida eterna (cf. Jo 3.14-16).
O propósito do envio é que possamos viver por meio de Cristo, através de sua morte sacrificial por nossos pecados (4.9-10). Através do pecado estávamos todos alienados de Deus. Esta alienação permanece até que Cristo intervenha para reconciliar-nos.
Propiciação significa "apaziguamento" ou "satisfação". No entanto, aqui não é uma referência focada na ira de Deus, mas em seu amor - ao perdoar os nossos pecados (4.10). O sacrifício de Jesus na cruz satisfez as exigências da santidade de Deus para o castigo do pecado (cf. 2Co 5.21). Assim, Jesus tornou Deus propício (favorável), ao satisfazer Sua justiça e santidade. Cristo tornou-se nosso propiciatório como aquele que ficava no Santo dos Santos, no qual o Sumo-Sacerdote aspergia o sangue do sacrifício no dia da Expiação (Lv 16.15; Hb 9.5). Cristo fez isso quando o seu sangue, derramado em favor de outros, satisfez as exigências da justiça santa de Deus e de sua ira contra o pecado.
A consequência do amor de Deus por nós é que, agora, devemos amar uns aos outros (4.11). O amor que vem de Deus, o amor que ele tem por nós, atinge a perfeição em nosso amor pelos outros, que é o que Deus quer e o que os crentes são ordenados a fazer. Conforme escreveu o apóstolo João: “E o seu mandamento é este: que creiamos no nome de seu Filho Jesus Cristo, e nos amemos uns aos outros, segundo o seu mandamento” (1 João 3.23).
O facto de Deus ter enviado o seu Filho da aos cristãos não somente o privilégio da salvação, mas a obrigação de seguir esse padrão do amor sacrificial (Ef 5.1-2).
O amor de Deus define o padrão para o amor que os cristãos são chamados a incorporar. Agir com amor sacrificial para com os outros significa perdoar aqueles que precisam de nosso perdão, assim como Deus perdoou-nos em Cristo. Significa gastar nosso tempo e recursos atendendo às necessidades dos outros (1 Jo 3.16-18). Uma boa ilustração é a parábola do bom samaritano (Lc 10.29-37), na qual Jesus define tanto o "próximo" quanto o "amor".
Um certo doutor da lei perguntou a Jesus: Quem é o meu próximo? “E, respondendo Jesus, disse: Descia um homem de Jerusalém para Jericó, e caiu nas mãos dos salteadores, os quais o despojaram, e espancando-o, se retiraram, deixando-o meio morto. E, ocasionalmente descia pelo mesmo caminho certo sacerdote; e, vendo-o, passou de largo. E de igual modo também um levita, chegando àquele lugar, e, vendo-o, passou de largo. Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele e, vendo-o, moveu-se de íntima compaixão; e, aproximando-se, atou-lhe as feridas, deitando-lhes azeite e vinho; e, pondo-o sobre o seu animal, levou-o para uma estalagem, e cuidou dele; e, partindo no outro dia, tirou dois dinheiros, e deu-os ao hospedeiro, e disse-lhe: Cuida dele; e tudo o que de mais gastares eu to pagarei quando voltar. Qual, pois, destes três te parece que foi o próximo daquele que caiu nas mãos dos salteadores? E ele disse: O que usou de misericórdia para com ele. Disse, pois, Jesus: Vai, e faze da mesma maneira (Lucas 10.29-37).
Note que a ordem de Jesus para amar o próximo não é uma exigência de intimidade forçada ou sentimentalismo superficial. É uma ordem para atender às necessidades dos outros quando os encontramos.
Ninguém pode ver Deus em seu acto de amor uma vez que Ele é invisível (4.12). Uma vez que Deus é Espírito (Jo 4.24), homem algum jamais o viu em sua essência ou seu ser-espírito. Mas em Jesus os homens puderam ver a Deus na forma humana (Jo 1.18; 5.37; 6.46; 14.8-9). O filho de Deus é a revelação suprema e completa de Deus na expressão humana. Contudo, o Filho de Deus não esta mais fisicamente no mundo para manifestar visivelmente o amor do Pai. A única demonstração visível do amor de Deus nesta era é a igreja de Cristo, quando há amor entre os irmãos. Conforme disse o Senhor Jesus: “Um novo mandamento vos dou: Que vos ameis uns aos outros; como eu vos amei a vós, que também vós uns aos outros vos ameis. Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros.” (João 13.34,35). E também como lemos em 1 João 4.20-21: “Se alguém afirma: “Amo a Deus”, mas odeia seu irmão, é mentiroso, pois se não amamos nosso irmão, a quem vemos, como amaremos a Deus, a quem não vemos? Ele nos deu este mandamento: quem ama a Deus, ame também seus irmãos”. Deus, portanto, é revelado na qualidade dos relacionamentos dos cristãos com os outros (Jo 13.34).
Embora o evangelicalismo atual enfatize muito o “Jesus-e-eu”, a Sagrada Escritura não concebe um cristão isolado e independente (1 Pedro 2.4-5). O Novo Testamento fala de amar a Deus em termos de relacionamento com seu povo, quando nos reunimos para a adoração, enquanto oramos uns pelos outros, enquanto participamos da Ceia do Senhor juntos. Até mesmo os mandamentos de Deus, que estipulam a obediência a Deus, são em grande parte mandamentos sobre como tratar os outros (Êxodo 20.12-17; Dt 5.16-21).
Resumindo, o argumento de João pode ser resumido assim (João 4.7-12): o amor originou-se em Deus, manifestou-se em seu Filho e foi demonstrado em seu povo.
Oremos para que Cristo habite pela fé em nossos corações; a fim de, estando arraigados e fundados em amor, possamos perfeitamente compreender, com todos os santos, qual seja a largura, e o comprimento, e a altura, e a profundidade, e conhecermos o amor de Cristo, que excede todo o entendimento, para que sejamos cheios de toda a plenitude de Deus (Ef 3.17-19).
______________
Referências:
Barry, J.D. et al., 2012, 2016. Faithlife Study Bible, Bellingham, WA: Lexham Press (1 John 4).
Boor, W. 2008. Comentário Esperança: Cartas de João. Curitiba: Editora Evangélica Esperança (I João 4.7-12).
Blaney, H. J. S. 2006. A primeira Epístola de João. (In Earle, R., ed., et al. Comentário Bíblico Beacon, vol. 10. RJ: CPAD, p. 318-323).
Calvino, J., 2015. Epístolas Gerais. 1º Edição. São José dos Campos, SP: Editora FIEL.
Crossway Bibles, 2008. The ESV Study Bible, Wheaton, IL: Crossway Bibles (1 John 4).
Jobes, K.H. 2014. 1, 2 e 3 John. Grand Rapids, MI: Zondervan (1 John 4.7-12).
Kistemaker, S. J. 2006. Tiago e Epístolas de João. 1a ed. SP: Editora Cultura Cristã (1 John 4.7-12).
Louw, J.P. & Nida, E.A., 1996. Greek-English lexicon of the New Testamento: based on semântica domais, Vl. 1, p.590.
MacArthur, J. 2010. Bíblia MacArthur. São Paulo: SBB, p. 1761-1762.
Morris, L. 2009. 1 João. (In Carson, D. A. ed., et al. Comentário Bíblico Vida Nova. SP: Edições Vida Nova, p. 2106-2107).
Packer, J. I. 1998. Teologia Concisa: síntese dos fundamentos da fé cristã. SP: Cultura Cristã, p. 43-45.