Os discursos ocupam um lugar de destaque no livro de Atos. Não
menos que dezenove palestras cristãs significativas aparecem em Atos. Oito são
de Pedro (nos capítulos 1, 2, 3, 4, 5, 10, 11 e 15), uma de Estêvão e uma de
Tiago (nos capítulos 7 e 15), e nove de Paulo (nos capítulos 13, 14, 17, 20,
22-26, 28). Aproximadamente 20% do texto de Lucas é devotado às pregações de
Pedro e Paulo; se acrescentarmos a pregação de Estêvão, o índice sobe para
quase 25% (Stott, 2008).
No campo teológico fazemos uma distinção entre duas palavras
gregas, kerygma e didache. O kerygma é
a mensagem pregada pelos apóstolos na igreja primitiva. Esse kerygma sempre
destacava que a profecia do Antigo Testamento havia sido cumprida na pessoa e
obra de Jesus. Essa pregação consistia fundamentalmente numa recapitulação da
vida e ministério de Cristo – seu nascimento da descendência de Davi, os
milagres que realizou através do poder de Deus, e sua crucificação,
sepultamento, ressurreição e ascensão ao céu. Estes eram os componentes essenciais
da proclamação apostólica do evangelho, ou o kerygma (Sproul, 2017).
O didache refere-se ao ensino que seguiria a pregação do
evangelho. Após responderem positivamente ao evangelho e se juntarem à igreja,
as pessoas recebiam instrução, a qual denominamos a parte didática da
experiência cristã (como em Atos 2.42).
Em Atos 2.14-41 temos o registo do primeiro sermão da história da
igreja cristã. Este sermão foi pregado por Pedro no dia de Pentecostes, que
resultou em quase 3.000 convertidos. Quais são as características da primeira
pregação apostólica?
Foi uma pregação bíblica e expositiva. O sermão é
dividido em três partes, cada uma das quais começa com uma chamada aos
ouvintes: “homens judeus” (2.14); “homens israelitas” (2.22); e irmãos (2.29). Cada
uma dessas três partes do discurso gira em torno de citações bíblicas.
Pedro une três citações do AT (Jl 2.28-32 nos vv. 17-21; Sl
16.8-11 nos vv. 25-28; Sl 110.1 nos vv. 34-35) com uma alusão do Sl 132.11 no
versículo 30. A alusão refere-se à promessa de Deus de colocar um descendente
no trono de Davi para governar, uma promessa que Pedro vê como messiânica.
Todas as passagens citadas no discurso explicam o plano de Deus. Explicam que a
salvação de Deus chegou por meio da vida, morte, ressurreição e exaltação de
Jesus Cristo à destra de Deus (Sl 110.1).
Pedro, introduz sua mensagem, corrigindo uma falsa suposição do
seu auditório (2.14-21). A falsa suposição dos zombadores (2.13), deu a Pedro a
sua oportunidade para explicar o significado do sinal das línguas no dia de
pentecostes (1 Co 14.22-23).
Pedro garante à multidão que os discípulos não estão bêbados e
afirma que este é o derramamento do Espírito Santo nos últimos dias que o
profeta Joel previu (Nm 11.21; Is 32.15; 44.3-4; Jr 31.33-34; Ez 36.26-27;
39.29). A vinda do Espírito marca a inauguração dos tempos do fim. Os ouvintes
de Pedro já estão a viver nos últimos dias, entre a primeira e a segunda Vinda
de Cristo. Observe a atitude de Pedro. Há uma tremenda diferença entre o Pedro
de antes e depois do Pentecostes.
A citação de Joel é um exemplo da lei da dupla referência, de
acordo com a qual as profecias bíblicas se cumprem de forma parcial numa época
e total numa ocasião posterior. O Espírito de Deus foi derramado no
Pentecostes, mas os sinais apocalípticos nos versículos 19-20 referem-se à
consumação ainda futura do reino. Pedro encerra a citação de Joel no seguinte
ponto: “E acontecerá que todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo”
(2.21). “O Senhor” em Joel 2.32 é o Senhor Deus, e no sermão de Pedro “o
Senhor” é Jesus, o que de forma implícita afirma sua divindade.
Foi uma pregação cristocêntrica na sua essência (2.22-36). A essência
do cristianismo é centralizado no Senhor Jesus Cristo. É impossível pregar o
evangelho sem proclamar Cristo. A mensagem de Pedro versou sobre a pessoa de
Cristo e sua obra redentora. Cinco ênfases podem ser identificados no sermão de
Pedro (Lopes, 2012).
(1) A vida de Cristo (2.22). Pedro mostra que Jesus
foi aprovado por Deus, vivendo de forma extraordinária e realizando milagres,
prodígios e sinais. Nicodemos veio a Jesus
à noite e disse, “Rabi, sabemos que és Mestre vindo da parte de Deus; porque
ninguém pode fazer estes sinais que tu fazes, se Deus não estiver com ele” (Jo
3.2). O ponto principal de um milagre é Deus dar seu sinal de aprovação, de
confirmação, de que essa pessoa está falando a verdade e como prova de missão
divina de Cristo. Os milagres que os apóstolos realizam em nome de Jesus também
confirmam a verdade de sua mensagem (2.43; 4.30; 5.12; 6.8; 14.3; 15.12; Hb
2.3-4).
(2) A morte de Cristo (2.23). A cruz não foi um
acidente, mas parte do plano eterno de Deus (3.18; 4.28; 13.29). Pedro disse ao
povo que, embora homens ímpios, tanto judeus como gentios (4.27, 28),
tenham matado Jesus por sua própria vontade, suas ações estavam dentro da
determinação soberana de Deus (cf.tb.: 17.26; 2 Cr 25.16; Jr 21.10; Dn
11.36).
Deus ordena os meios e também os fins dos eventos humanos sem
violar a liberdade humana ou remover a responsabilidade humana. O exemplo
clássico é José perante seus irmãos no momento de seu reencontro. Eles estavam
aterrorizados julgando que José pudesse vingar-se deles, mas José
tranquilizou-os dizendo: “Vós, na verdade, intentastes o mal contra mim; porém
Deus o tornou em bem” (Gn 50.20). Os irmãos de José agiram traiçoeiramente e o
mandaram para a escravidão, mas Deus estava a agir através disso para seus bons
propósitos.
Embora não possamos perceber completamente como o decreto soberano
de Deus pode ser compatível com a responsabilidade humana pelo mal, ambos são
claramente afirmados aqui e em muitas outras passagens das Escrituras (3.13-17; 4.27-28).
(3) A ressurreição de Cristo (2.24–32). A
ressurreição de Cristo está no coração da fé cristã. Como o apóstolo Paulo
disse à igreja em Corinto: “(…) se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé, e
ainda permaneceis nos vossos pecados” (1Co 15.17).
Nos versículos 24-32, Pedro confirma a ressurreição de Cristo
fundamentado no Salmo 16.8–11, um salmo de coroação que profetizava a vinda do
Messias. Davi não poderia estar a referir-se sobre si mesmo quando disse que
Deus não o deixaria na morte nem permitiria que o seu Santo visse a corrupção
(2.27), pois Davi morreu e foi sepultado, e seu túmulo ainda estava em
Jerusalém (2.29). Obviamente, Davi referia-se ao seu descendente, ou seja,
estava fazendo referência à ressurreição do Messias (2.30,31).
Não era possível a morte retê-lo como seu prisioneiro, pois o
caráter de Deus exigia a ressurreição. A Escritura diz que é através do pecado
que a morte entrou no mundo (Rm 5.12). Logo, seria moralmente injusto que Deus
permitisse que um homem sem pecado sofresse a maldição que Ele atribuiu ao
pecado.
(4) A exaltação de Cristo (2.33–35). Aqui Pedro
cita o salmo 110 (Atos 2.34–35), no qual o próprio Davi disse: “Yahweh disse ao
meu Adonai”, ou “Disse o Senhor ao meu Soberano, assenta-te à minha mão
direita”. O conteúdo desse diálogo dentro da Divindade é entre o próprio Deus e
Aquele a quem Ele apontou para ser o Senhor de Davi, seu Adonai, o qual o Novo
Testamento traduz κύριος, ou Senhor.
Resumindo, ao consumar sua obra aqui no mundo, Jesus ressuscitou
em glória e comissionou seus discípulos a pregar o evangelho em todo o mundo, a
toda a criatura. Depois, voltou para o céu, entrou na glória e assentou-se à
destra do Pai, para governar a igreja, intercedendo em seu favor e revestindo-a
com o poder do seu Espírito (Lopes, 2012).
(5) O senhorio de Cristo (2.36). No coração
deste texto está a afirmação do senhorio de Cristo. Deus colocou Cristo à sua
destra. O primeiro credo da igreja do 1° século era curto e simples: “Jesus é
Senhor”, e vemos essa confissão surpreendente na conclusão do sermão de Pedro
no Pentecostes.
Durante o 1° e 2° séculos, os cidadãos de Roma eram obrigados a
fazer um juramento de lealdade e dizer publicamente, “Cesar é Senhor”. A
comunidade cristã, no entanto, não diria isso. Eles estavam dispostos a
oferecer honra e obediência ao imperador, mas não poderiam fazer o juramento de
lealdade, mesmo que essa recusa lhes custasse a própria vida, porque a sua
confissão era “Jesus é Senhor”.
Pedro proclamou a história de Jesus em três níveis diferentes -
como um acontecimento histórico (testemunhado pelos seus próprios olhos), como
um facto teológico (interpretado pelas Escrituras), e como uma mensagem
contemporânea (confrontando os ouvintes com a necessidade da decisão).
Foi uma pregação clara, ousada e poderosa (2.37-41). Os ouvintes
de Pedro eram como nós. Não queriam alguém dando ordens supremas sobre suas
vidas, e por isso seus corações se tornaram endurecidos, mas tamanho foi o
poder de persuasão do Espírito que, mesmo sem Pedro ter feito um convite ou
apelo, seus ouvintes perguntaram: Que faremos, irmãos? A pergunta foi motivada
por um sentimento profundo de culpa.
Antes de falar sobre perdão e salvação, mostrou que eles estavam
perdidos em seus pecados. O que o evangelho exige é que se deixe o pecado e se
volte radicalmente a Cristo. Hoje a pregação do arrependimento está
desaparecendo dos púlpitos, Tem-se pregado muito sobre libertação e quase nada
sobre arrependimento. Mas a ordem de Deus nas Escrituras é:
Arrependei-vos!
Não há salvação sem arrependimento. O arrependimento (voltar-se
para Deus em tristeza pelo pecado) e o baptismo foram partes importantes da
mensagem de João Batista (Mt 3.1; Mc 1.4) e de Jesus (Mt 4.17; 11.20; Lucas
13.3, 5), e permanecem no centro da pregação e do ensino da igreja (Mt 28.18,
19).
Às vezes, a fé sozinha é mencionada como a única coisa necessária
para a salvação (Jo 3.16; At 16.31; Rm 10.9; Ef 2.8–9), outras vezes apenas o
arrependimento é mencionado (Lc 24.47; At 3.19; 5.31; 17.30; 2 Co 7.10, 2
Tm 2.25), e às vezes ambos são nomeados (At 20.21; Mc 1.15).
O baptismo é uma expressão exterior da fé e do arrependimento =
conversão (1 Pe 3.21). A pessoa que está sendo baptizada entra num
relacionamento de lealdade para com Jesus. Através dessa conversão e baptismo,
somos transferidos para a comunidade de Jesus. Entretanto, é o Espírito Santo
que leva a efeito a purificação no íntimo, da qual o batismo é o símbolo
externo da identificação com Cristo.
Portanto, o evangelho que Pedro pregou não é apenas as boas novas
daquilo que Jesus fez, mas também daquilo que Ele nos oferece como resultado
(2.38–40). Àqueles que responderam a mensagem, Ele promete perdão
dos pecados (apagando-lhes o passado) e a dádiva do Espírito (transformando-os
em novas pessoas).
Finalmente, foi uma pregação que produziu conversões abundantes
(2.41). Muitas pessoas pediram para ser baptizadas e naquele dia, houve um
acréscimo de quase três mil pessoas à comunidade dos cristãos. Por certo, o
pescador galileu lembrou-se das palavras de Jesus: “Eu vos farei pescadores de
homens” (Mt 4.19). E, talvez, da declaração do Mestre: “Em verdade, em verdade
vos digo que aquele que crê em mim fará também as obras que eu faço e outras
maiores fará, porque eu vou para junto do Pai” (Jo 14:12).
Ao serem convertidos foram batizados e integraram-se na igreja e
perseveraram (At 2.42–47). Criaram raízes. Amadureceram. Foi o Senhor quem
acrescentou estas 3000 pessoas (2.47). H. D. Lopes observou que “hoje é difícil
manter atualizado o rol de membros de uma igreja. As pessoas entram pela porta
da frente e, na primeira crise, saem pela porta dos fundos. Bebem em várias
fontes, buscam alimento em diversos pastos. Tornam-se ovelhas errantes, sem
referência, sem raízes”.
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Referências: Boor,
W. 2002. Comentário Esperança, Atos dos Apóstolos. Curitiba: Evangélica Esperança, p. 39–46. / Carson, D.
A., ed. 2018. NIV Biblical Theology Study Bible. Grand Rapids, MI: Zondervan. /
Crossway Bibles. 2008. The ESV Study Bible. Wheaton, IL: Crossway Bibles,
p. 2082–2083. Kistemaker, S. 2016. Atos, Comentário do Novo Testamento, vl. 1. SP:
Cultura Cristã. / Lopes, H. D. 2012. Atos: A Ação do Espírito Santo na Vida da Igreja:
Comentários Expositivos Hagnos. SP: Hagnos. / MacDonald, M. 2011. Comentário Bíblico Popular: Novo Testamento. SP:
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Inter-Varsity Press. Sproul, R. C. 2017. Estudos Bíblicos Expositivos em Atos. SP:
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confins da terra. SP: ABU
Pr Alexandre Cosme de Moraes