A pregação apostólica

 Atos 2.14-41

 

Os discursos ocupam um lugar de destaque no livro de Atos. Não menos que dezenove palestras cristãs significativas aparecem em Atos. Oito são de Pedro (nos capítulos 1, 2, 3, 4, 5, 10, 11 e 15), uma de Estêvão e uma de Tiago (nos capítulos 7 e 15), e nove de Paulo (nos capítulos 13, 14, 17, 20, 22-26, 28). Aproximadamente 20% do texto de Lucas é devotado às pregações de Pedro e Paulo; se acrescentarmos a pregação de Estêvão, o índice sobe para quase 25% (Stott, 2008).

 

No campo teológico fazemos uma distinção entre duas palavras gregas, kerygma e didache. O kerygma é a mensagem pregada pelos apóstolos na igreja primitiva. Esse kerygma sempre destacava que a profecia do Antigo Testamento havia sido cumprida na pessoa e obra de Jesus. Essa pregação consistia fundamentalmente numa recapitulação da vida e ministério de Cristo – seu nascimento da descendência de Davi, os milagres que realizou através do poder de Deus, e sua crucificação, sepultamento, ressurreição e ascensão ao céu. Estes eram os componentes essenciais da proclamação apostólica do evangelho, ou o kerygma (Sproul, 2017). O didache refere-se ao ensino que seguiria a pregação do evangelho. Após responderem positivamente ao evangelho e se juntarem à igreja, as pessoas recebiam instrução, a qual denominamos a parte didática da experiência cristã (como em Atos 2.42).

 

Em Atos 2.14-41 temos o registo do primeiro sermão da história da igreja cristã. Este sermão foi pregado por Pedro no dia de Pentecostes, que resultou em quase 3.000 convertidos. Quais são as características da primeira pregação apostólica? 

 

Foi uma pregação bíblica e expositiva. O sermão é dividido em três partes, cada uma das quais começa com uma chamada aos ouvintes: “homens judeus” (2.14); “homens israelitas” (2.22); e irmãos (2.29). Cada uma dessas três partes do discurso gira em torno de citações bíblicas.

 

Pedro une três citações do AT (Jl 2.28-32 nos vv. 17-21; Sl 16.8-11 nos vv. 25-28; Sl 110.1 nos vv. 34-35) com uma alusão do Sl 132.11 no versículo 30. A alusão refere-se à promessa de Deus de colocar um descendente no trono de Davi para governar, uma promessa que Pedro vê como messiânica. Todas as passagens citadas no discurso explicam o plano de Deus. Explicam que a salvação de Deus chegou por meio da vida, morte, ressurreição e exaltação de Jesus Cristo à destra de Deus (Sl 110.1).

 

Pedro, introduz sua mensagem, corrigindo uma falsa suposição do seu auditório (2.14-21). A falsa suposição dos zombadores (2.13), deu a Pedro a sua oportunidade para explicar o significado do sinal das línguas no dia de pentecostes (1 Co 14.22-23). 

 

Pedro garante à multidão que os discípulos não estão bêbados e afirma que este é o derramamento do Espírito Santo nos últimos dias que o profeta Joel previu (Nm 11.21; Is 32.15; 44.3-4; Jr 31.33-34; Ez 36.26-27; 39.29). A vinda do Espírito marca a inauguração dos tempos do fim. Os ouvintes de Pedro já estão a viver nos últimos dias, entre a primeira e a segunda Vinda de Cristo. Observe a atitude de Pedro. Há uma tremenda diferença entre o Pedro de antes e depois do Pentecostes.  

 

A citação de Joel é um exemplo da lei da dupla referência, de acordo com a qual as profecias bíblicas se cumprem de forma parcial numa época e total numa ocasião posterior. O Espírito de Deus foi derramado no Pentecostes, mas os sinais apocalípticos nos versículos 19-20 referem-se à consumação ainda futura do reino. Pedro encerra a citação de Joel no seguinte ponto: “E acontecerá que todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo” (2.21). “O Senhor” em Joel 2.32 é o Senhor Deus, e no sermão de Pedro “o Senhor” é Jesus, o que de forma implícita afirma sua divindade.

 

Foi uma pregação cristocêntrica na sua essência (2.22-36). A essência do cristianismo é centralizado no Senhor Jesus Cristo. É impossível pregar o evangelho sem proclamar Cristo. A mensagem de Pedro versou sobre a pessoa de Cristo e sua obra redentora. Cinco ênfases podem ser identificados no sermão de Pedro (Lopes, 2012).

 

(1) A vida de Cristo (2.22). Pedro mostra que Jesus foi aprovado por Deus, vivendo de forma extraordinária e realizando milagres, prodígios e sinais. Nicodemos veio a Jesus à noite e disse, “Rabi, sabemos que és Mestre vindo da parte de Deus; porque ninguém pode fazer estes sinais que tu fazes, se Deus não estiver com ele” (Jo 3.2). O ponto principal de um milagre é Deus dar seu sinal de aprovação, de confirmação, de que essa pessoa está falando a verdade e como prova de missão divina de Cristo. Os milagres que os apóstolos realizam em nome de Jesus também confirmam a verdade de sua mensagem (2.43; 4.30; 5.12; 6.8; 14.3; 15.12; Hb 2.3-4).

 

(2) A morte de Cristo (2.23). A cruz não foi um acidente, mas parte do plano eterno de Deus (3.18; 4.28; 13.29). Pedro disse ao povo que, embora homens ímpios, tanto judeus como gentios (4.27, 28), tenham matado Jesus por sua própria vontade, suas ações estavam dentro da determinação soberana de Deus (cf.tb.: 17.26; 2 Cr 25.16; Jr 21.10; Dn 11.36). 

 

Deus ordena os meios e também os fins dos eventos humanos sem violar a liberdade humana ou remover a responsabilidade humana. O exemplo clássico é José perante seus irmãos no momento de seu reencontro. Eles estavam aterrorizados julgando que José pudesse vingar-se deles, mas José tranquilizou-os dizendo: “Vós, na verdade, intentastes o mal contra mim; porém Deus o tornou em bem” (Gn 50.20). Os irmãos de José agiram traiçoeiramente e o mandaram para a escravidão, mas Deus estava a agir através disso para seus bons propósitos.

 

Embora não possamos perceber completamente como o decreto soberano de Deus pode ser compatível com a responsabilidade humana pelo mal, ambos são claramente afirmados aqui e em muitas outras passagens das Escrituras (3.13-17; 4.27-28). 

 

(3) A ressurreição de Cristo (2.24–32). A ressurreição de Cristo está no coração da fé cristã. Como o apóstolo Paulo disse à igreja em Corinto: “(…) se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé, e ainda permaneceis nos vossos pecados” (1Co 15.17). 

 

Nos versículos 24-32, Pedro confirma a ressurreição de Cristo fundamentado no Salmo 16.8–11, um salmo de coroação que profetizava a vinda do Messias. Davi não poderia estar a referir-se sobre si mesmo quando disse que Deus não o deixaria na morte nem permitiria que o seu Santo visse a corrupção (2.27), pois Davi morreu e foi sepultado, e seu túmulo ainda estava em Jerusalém (2.29). Obviamente, Davi referia-se ao seu descendente, ou seja, estava fazendo referência à ressurreição do Messias (2.30,31). 

 

Não era possível a morte retê-lo como seu prisioneiro, pois o caráter de Deus exigia a ressurreição. A Escritura diz que é através do pecado que a morte entrou no mundo (Rm 5.12). Logo, seria moralmente injusto que Deus permitisse que um homem sem pecado sofresse a maldição que Ele atribuiu ao pecado.

 

(4) A exaltação de Cristo (2.33–35). Aqui Pedro cita o salmo 110 (Atos 2.34–35), no qual o próprio Davi disse: “Yahweh disse ao meu Adonai”, ou “Disse o Senhor ao meu Soberano, assenta-te à minha mão direita”. O conteúdo desse diálogo dentro da Divindade é entre o próprio Deus e Aquele a quem Ele apontou para ser o Senhor de Davi, seu Adonai, o qual o Novo Testamento traduz κύριος, ou Senhor.

 

Resumindo, ao consumar sua obra aqui no mundo, Jesus ressuscitou em glória e comissionou seus discípulos a pregar o evangelho em todo o mundo, a toda a criatura. Depois, voltou para o céu, entrou na glória e assentou-se à destra do Pai, para governar a igreja, intercedendo em seu favor e revestindo-a com o poder do seu Espírito (Lopes, 2012). 

 

(5) O senhorio de Cristo (2.36). No coração deste texto está a afirmação do senhorio de Cristo. Deus colocou Cristo à sua destra. O primeiro credo da igreja do 1° século era curto e simples: “Jesus é Senhor”, e vemos essa confissão surpreendente na conclusão do sermão de Pedro no Pentecostes. 

 

Durante o 1° e 2° séculos, os cidadãos de Roma eram obrigados a fazer um juramento de lealdade e dizer publicamente, “Cesar é Senhor”. A comunidade cristã, no entanto, não diria isso. Eles estavam dispostos a oferecer honra e obediência ao imperador, mas não poderiam fazer o juramento de lealdade, mesmo que essa recusa lhes custasse a própria vida, porque a sua confissão era “Jesus é Senhor”.

 

Pedro proclamou a história de Jesus em três níveis diferentes - como um acontecimento histórico (testemunhado pelos seus próprios olhos), como um facto teológico (interpretado pelas Escrituras), e como uma mensagem contemporânea (confrontando os ouvintes com a necessidade da decisão).

 

Foi uma pregação clara, ousada e poderosa (2.37-41). Os ouvintes de Pedro eram como nós. Não queriam alguém dando ordens supremas sobre suas vidas, e por isso seus corações se tornaram endurecidos, mas tamanho foi o poder de persuasão do Espírito que, mesmo sem Pedro ter feito um convite ou apelo, seus ouvintes perguntaram: Que faremos, irmãos? A pergunta foi motivada por um sentimento profundo de culpa.

 

Antes de falar sobre perdão e salvação, mostrou que eles estavam perdidos em seus pecados. O que o evangelho exige é que se deixe o pecado e se volte radicalmente a Cristo. Hoje a pregação do arrependimento está desaparecendo dos púlpitos, Tem-se pregado muito sobre libertação e quase nada sobre arrependimento. Mas a ordem de Deus nas Escrituras é: Arrependei-vos! 

 

Não há salvação sem arrependimento. O arrependimento (voltar-se para Deus em tristeza pelo pecado) e o baptismo foram partes importantes da mensagem de João Batista (Mt 3.1; Mc 1.4) e de Jesus (Mt 4.17; 11.20; Lucas 13.3, 5), e permanecem no centro da pregação e do ensino da igreja (Mt 28.18, 19).

 

Às vezes, a fé sozinha é mencionada como a única coisa necessária para a salvação (Jo 3.16; At 16.31; Rm 10.9; Ef 2.8–9), outras vezes apenas o arrependimento é mencionado (Lc 24.47; At 3.19; 5.31; 17.30; 2 Co 7.10, 2 Tm 2.25), e às vezes ambos são nomeados (At 20.21; Mc 1.15). 

 

O baptismo é uma expressão exterior da fé e do arrependimento = conversão (1 Pe 3.21). A pessoa que está sendo baptizada entra num relacionamento de lealdade para com Jesus. Através dessa conversão e baptismo, somos transferidos para a comunidade de Jesus. Entretanto, é o Espírito Santo que leva a efeito a purificação no íntimo, da qual o batismo é o símbolo externo da identificação com Cristo.

 

Portanto, o evangelho que Pedro pregou não é apenas as boas novas daquilo que Jesus fez, mas também daquilo que Ele nos oferece como resultado (2.38–40). Àqueles que responderam a mensagem, Ele promete perdão dos pecados (apagando-lhes o passado) e a dádiva do Espírito (transformando-os em novas pessoas).

 

Finalmente, foi uma pregação que produziu conversões abundantes (2.41). Muitas pessoas pediram para ser baptizadas e naquele dia, houve um acréscimo de quase três mil pessoas à comunidade dos cristãos. Por certo, o pescador galileu lembrou-se das palavras de Jesus: “Eu vos farei pescadores de homens” (Mt 4.19). E, talvez, da declaração do Mestre: “Em verdade, em verdade vos digo que aquele que crê em mim fará também as obras que eu faço e outras maiores fará, porque eu vou para junto do Pai” (Jo 14:12).

 

Ao serem convertidos foram batizados e integraram-se na igreja e perseveraram (At 2.42–47). Criaram raízes. Amadureceram. Foi o Senhor quem acrescentou estas 3000 pessoas (2.47). H. D. Lopes observou que “hoje é difícil manter atualizado o rol de membros de uma igreja. As pessoas entram pela porta da frente e, na primeira crise, saem pela porta dos fundos. Bebem em várias fontes, buscam alimento em diversos pastos. Tornam-se ovelhas errantes, sem referência, sem raízes”.

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Referências: Boor, W. 2002. Comentário Esperança, Atos dos Apóstolos. Curitiba: Evangélica Esperança, p. 39–46. / Carson, D. A., ed. 2018. NIV Biblical Theology Study Bible. Grand Rapids, MI: Zondervan. / Crossway Bibles. 2008. The ESV Study Bible. Wheaton, IL: Crossway Bibles, p. 2082–2083. Kistemaker, S. 2016. Atos, Comentário do Novo Testamento, vl. 1. SP: Cultura Cristã. / Lopes, H. D. 2012. Atos: A Ação do Espírito Santo na Vida da Igreja: Comentários Expositivos Hagnos. SP: Hagnos. / MacDonald, M. 2011. Comentário Bíblico Popular: Novo Testamento. SP: Mundo Cristão. / Marshall, I. H. 1980. The Acts o f the Apostles, an Introduction and Commentary. London: Inter-Varsity Press. Sproul, R. C. 2017. Estudos Bíblicos Expositivos em Atos. SP: Editora Cultura Cristã, p. 30–35. / Stott, J. 2008. A Mensagem de Atos: até os confins da terra. SP: ABU


Pr Alexandre Cosme de Moraes