A substituição de um traidor


Depois da Ressurreição Jesus foi visto por mais de 500 irmãos de uma só vez (1Co 15.6). Esse aparecimento pode ter ocorrido na Galileia (Mt 28.10,16–20). No entanto, em Jerusalém, encontravam-se cerca de 120 crentes que, entre a Ascensão de Jesus e o Pentecostes, estavam reunidos com os 11 apóstolos (At 1.15). Os crentes de Jerusalém se reuniram não só para a oração, mas também para a reflexão a respeito da vaga deixada pela morte de Judas Iscariotes.  

O texto informa que o apóstolo Pedro “levanta-se no meio dos irmãos” e toma a palavra (At 1.15). Aqui algo muito grandioso torna-se visível: a realidade plena do perdão! Quem está a levantar-se no meio dos irmãos é aquele homem que negou o Senhor. Vemos aqui quem negou Jesus, relatando a história de quem o traiu. Será Pedro ainda “digno” de ser o dirigente em seu meio? A primeira igreja em Jerusalém teve a capacidade de lidar com as duas questões: (1) não dissimular a queda de Pedro, mas relatá-la com toda a clareza no próprio evangelho, e (2) ao mesmo tempo reconhecer sem restrições em Pedro o líder do grupo dos discípulos. A primeira igreja percebeu que o perdão que Jesus concedeu a Pedro havia apagado integralmente a culpa dele. Consequentemente, o próprio Pedro também não está diante deles inseguro, com sentimentos de inferioridade. Ele recebe o perdão de Deus e assume a tarefa que Jesus lhe deu (Mt 16.18s; Jo 21.15–17).  

Depois de ter traído Jesus, Judas procurou o suicídio, ao invés de procurar arrependido o perdão (Mt 27.5). Aquele que cai e continua caído deve se desesperar. Entretanto, se alguém cair, deve pedir misericórdia a Deus e levantar-se, como fizeram Pedro e Davi. É vergonhoso cair, mas é mais vergonhoso permanecer no chão e não querer levantar. A igreja de Jerusalém demonstrou a realidade do perdão.  

O relato da morte do apóstolo traidor (At 1.16-20) 

No relato de Mateus somos informados que após Judas receber as 30 moedas de prata, em troca de entregar Jesus aos oficiais, foi acometido de remorso, voltou e jogou as moedas para os líderes, retirou-se e foi se enforcar (Mt 27.5). Atos 1.18-19, entretanto, informa que Judas foi enterrado num campo comprado pelo dinheiro sujo de sangue que recebeu por trair Jesus. Tudo indica que as autoridades usaram o dinheiro que Judas atirou a seus pés para comprar sua sepultura num lugar que chamaram “Campo de Sangue”. Mateus disse que ele morreu por enforcamento, e Lucas dá aqui o detalhe de que as entranhas de Judas estouraram quando ele caiu. “A sugestão é que Judas se enforcou de uma forma tão violenta, que ele despencou com tal força que os seus órgãos internos se romperam” (Sproul, 2017). Temos, portanto, uma lembrança desagradável do final da vida de Judas.

Judas teve a honra de ser chamado por Cristo para ser um apóstolo. Ele, como tesoureiro, ocupou um cargo de confiança no colégio apostólico. Porém, mesmo tendo parte no ministério apostólico, liderou a turba que prendeu Jesus no Getsêmani. Ele teve muitas oportunidades para voltar atrás em seu intento, porém, tapou os ouvidos a todas as advertências e acabou vendendo a Jesus, traindo-o com um beijo mentiroso (Jo 17.12; At 1.25). 

Pedro cita e aplica dois Salmos a Judas (1.20; SI 69.25 e 109.8), o primeiro para explicar o que aconteceu (a traição de Judas e a sua morte) e o segundo, para indicar o que eles deviam fazer (substituí-lo). Concordo com o que escreveu Calvino: “Judas não pode ser justificado pelo facto de sua ação ter sido profetizada, já que ele caiu não por causa da compulsão da profecia, mas devido à iniquidade de seu próprio coração”  (Lopes, 2012).

 Um novo apóstolo no lugar do traidor (At 1.21–22, 23-26)

O círculo dos Doze foi quebrado e deve ser restaurado (1.15-17, 20). Esse número apostólico deve ser restaurado antes que o Espírito venha, visto que Is. 32.15 profetizou que o Espírito restauraria Israel, e os doze apóstolos representam as 12 tribos de Israel. Isso mostra que a restauração de Israel iria começar com o derramamento do Espírito e incluiria também os gentios (cf. At 10.44-47; 11,15,16, 2.28-32).

Por que doze? No relato que Lucas nos dá da última Ceia, Jesus se pôs à mesa com "os apóstolos” (Lc 22.3, 14). O Senhor diante deles estabelece a nova aliança, em contraste com a antiga feita com Israel (Lc 22.20), estabelece a ordenança da “Ceia” em substituição à Páscoa (Lc 22.19-20), confia a eles o Reino de Deus (Lc 22.29) e lhes promete o assentar-se em tronos para julgar as doze tribos de Israel no seu reino vindouro (Lc 22.30; Ap 21.12-14). Jesus traçou um paralelo entre os doze apóstolos e as doze tribos de Israel. Se a igreja primitiva deveria ser aceita e vista como continuação direta e expandida do Israel do Antigo Testamento, o número de seus fundadores não poderia ser alterado. Os doze apóstolos deveriam ser os líderes desta nação espiritual, agora composta de judeus e gentios de todas as partes do mundo, unidos pela fé no Messias. Havia mais de um que preenchia as condições apresentadas: José Barsabás, o Justo, e Matias. Todavia, apenas um era necessário para completar o número doze. Isto mostra que o número doze era simbólico e representativo (A. N. Lopes, 2014).

Embora os apóstolos fossem discípulos, nem todos os discípulos se tornaram apóstolos. Um apóstolo tinha um ofício especial na igreja do Novo Testamento. O termo apóstolo significa ‘aquele que é enviado’ para falar e representar Aquele que o enviou. O apóstolo supremo da Nova Aliança é o próprio Jesus (Hb 3.1). Ele foi enviado pelo Pai e falou com a autoridade Nele investida pelo Pai. Rejeitar Jesus era rejeitar o Pai, que O enviou (Sproul, 2017). Da mesma forma, os doze apóstolos foram chamados e comissionados diretamente por Cristo e falaram com Sua autoridade. Rejeitar a autoridade apostólica era rejeitar a autoridade de Cristo, que os enviou (Lc 10.16).

Após a morte de Judas, a igreja precisou encontrar um substituto para a vaga, conforme registros de Atos. Havia, entretanto, alguns critérios especiais e para apostolado. A principais qualificações para se tornar um dos Doze incluíam ser: (1) um discípulo de Jesus durante Seu ministério terreno, que começou com seu batismo por João até a sua Ascensão; (2) uma testemunha ocular da Ressurreição e (3) ser escolhido diretamente por Cristo. 

Dois homens preenchiam os dois primeiros requisitos: José […] cognominado Justo, e Matias. Embora não sabemos nada sobre eles, o Eusébio de Cesareia diz que ambos eram membros dos Setenta (Lc 10.1). Mas qual devia ser escolhido? Cristo tinha nomeado os outros com sua voz. Se Matias fosse escolhido pelos irmãos, sua autoridade teria sido menor que a dos outros discípulos. Por essa razão, Pedro e sua audiência apresentaram a questão ao Senhor, pedindo que Ele revelasse sua decisão. Pedro, com base nas Escrituras proféticas (Sl 109.8), apresentou toda a questão à congregação. A igreja reunida buscou a direção divina. Eles oraram ao Senhor, pedindo que Ele lhes mostrasse qual dos dois havia escolhido (At 1.24). Então, “lançando-lhes sortes, caiu a sorte sobre Matias” (At 1.26). Assim, ele foi indicado como o sucessor de Judas. 

O que dizer do homem que não foi escolhido: José, Barsabás, o Justo? Matias foi escolhido para ser uma testemunho oficial da ressurreição (1.22), representando a igreja como um todo. Mas José, o Justo, também era uma testemunha qualificada, pois estivera com Jesus desde o princípio. Ele, sem dúvida, deu testemunho de seu Senhor (At 2.1, 4). Alguns clamam para serem líderes oficiais. Lutam para fazer parte de um conselho, de um cargo ou ser consagrado; mas isso não acrescenta nada ao nosso direito de servir a Jesus ou testemunhar o seu amor e a sua graça. Se você é uma dessas pessoas que não obteve alguma posição oficial na igreja, lembra-se deste discípulo (Richards, 2012). O cristão não precisa de uma posição oficial na comunidade para trabalhar na obra do Senhor. Estar com Jesus é uma honra muito maior do que ser escolhido para um cargo na sua igreja.   

Quanto à questão de lançar sortes, este método de discernir a vontade de Deus era reconhecido pelo Antigo Testamento (1.26; Js 7.16-18; 1 Sm 10.20-21): “A sorte se lança no regaço, mas do Senhor procede toda decisão” (Provérbios 16.33). Provavelmente significava sacudir as pedras marcadas numa jarra até que uma caísse. O Deus de toda a providência está por trás de todas as probabilidades! Isto não significa que as pessoas devam lançar sortes para tomar suas decisões hoje, pois não existe tal mandamento no Novo Testamento. Podemos assumir que tornou-se uma prática obsoleta depois que o Espírito Santo veio, uma vez que Ele guia e dirige o povo de Deus. 

Além disso, a nomeação de um décimo segundo apóstolo foi uma situação única, entre a Ascensão de Cristo e a Vinda do Espírito Santo. A seleção de Matias ao apostolado completou os 12 (At 6.4), antes do estabelecimento da igreja cristã - o povo de Deus na Nova Aliança. Tiago foi martirizado pouco depois, mas não foi substituído (At 12.2).

Alguns afirmam que os apóstolos foram precipitados, pois deveriam ter esperado que Deus escolhesse Paulo como o décimo segundo apóstolo. Mas nada neste texto e no restante do Novo Testamento sugere isso: (1) Paulo era um apóstolo especial para os gentios e não um dos Doze, cujo ministério específico era para os judeus (Gl 2.8–9). (2) O Novo Testamento diz que Matias foi contado entre os doze (At 6.2) e que o próprio Paulo faz menção aos doze sem incluir-se entre eles (1Co 15.5). (3) Paulo não era um “ex-discípulo” (como os Doze, At 1.21-22), e sua visão do Cristo ressuscitado ocorreu após a ascensão de Jesus (At 9). Paulo não foi testemunha ocular da ressurreição da mesma forma que os outros apóstolos. 

No entanto, Paulo foi diretamente chamado para o cargo por Cristo. Paulo diz que ele foi o último a ver o Cristo ressurrecto (1 Coríntios 15.8-9), e esta é uma das qualificações essenciais para o apostolado (1 Coríntios 9.1; Atos 1.21-26). Sua chamada foi confirmada pelos outros apóstolos, cujo apostolado não estava em dúvida e foi autenticado pelos milagres que Deus realizou por meio dele (2 Co 12.12), atestando sua autoridade como agente apostólico de revelação (1 Co 9.1-2; 15.8-10; Gl 1.16-18; 2.2, 7-10).

 

Portanto, com a exceção dos Doze e Paulo, os outros líderes da igreja são escolhidos de acordo com as decisões feitas pela igreja, seja por um apóstolo ou por outros nas igrejas (ver At 6.3-6; 14.23; 15.22; 2 Co 8.19; cf. 1 Tm. 3.1-13; Tt 1.5-9).

 

Não há apóstolos oficiais vivos hoje, pois ninguém pode atender aos critérios bíblicos para o cargo ou ser confirmado pelos apóstolos originais, como Paulo foi. A Bíblia é a única autoridade apostólica para nós hoje. Após ter morrido o último apóstolo, havia ainda professores, ministros, pregadores e evangelistas, mas não havia mais apóstolos. No final do primeiro século, os pais pós-apostólicos reconheceram claramente que sua autoridade estava subordinada aos apóstolos originais.

 

A Escritura ensina que os apóstolos e profetas foram usados por Deus para o lançamento dos fundamentos da Igreja (Efésios 2.20, 3.5). Eles também foram inspirados por Deus para escrever e supervisionar a composição do Novo Testamento. Portanto, a verdadeira igreja apostólica é aquela que persevera “na doutrina dos apóstolos” (At 2.42); é aquela que "guarda o bom depósito" que recebeu (2 Tm 1.14; 2 Tm 3.16); e que "batalha pela fé que uma vez foi dada aos santos" (Judas versículo 3). Isto deveria estar constantemente diante de nós enquanto almejamos construir a igreja hoje. Como no início do livro de Atos, onde vemos a igreja primitiva em sua pureza – obediente, unificada, em orando, pesquisando as Escrituras e submissa à autoridade apostólica.

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Referências: Boor, W. 2002. Comentário Esperança, Atos dos Apóstolos. Curitiba: Editora Evangélica Esperança, p. 34–38. / Carson, D. A. ed. 2018. NIV Biblical Theology Study Bible. Grand Rapids, MI: Zondervan, p. 1953–1954. / Chung-Kim, E., et al. 2016. Atos, Comentário Bíblico da Reforma. SP: Cultura Cristã, p. 73–75. / Crossway Bibles. 2008. The ESV Study Bible. Wheaton, IL: Crossway Bibles, p. 2081–2082. / Kistemaker, S. 2016. Atos, vl. 1: comentário do Novo Testamento. SP: Editora Cultura Cristã, p. 86–98. / Lopes, A. N. 2014. Apóstolos: a verdade bíblica sobre o apostolado. São José dos Campos, SP: Fiel. / Lopes, H. D. 2012. Atos: A Ação do Espírito Santo na Vida da Igreja. SP: Hagnos, p. 44–47. / MacDonald, W. 2011. Comentário Bíblico Popular: Novo Testamento. SP: Mundo Cristão, p. 333–335. / Parsons, M. C. 2008. Acts, Paideia Commentaries on The New Testament. Grand Rapids, MI: Baker Academic, p. 31-34. / Richards, L. O. 2012. Comentário Devocional da Bíblia. Rio de Janeiro, CPAD, p. 715-716. / Sproul, R. C. 2017. Estudos Bíblicos Expositivos em Atos. SP: Editora Cultura Cristã, p. 23–29. / Sproul, R. C., ed, 2015. The Reformation Study Bible: English Standard Version. Orlando, FL: Reformation Trust, p. 1912–1913.

 

Pr. Leonardo Cosme de Moraes