Santos Intrépidos



 Atos 4.13–31

 

A intrepidez é um atributo de virtude, um atributo que deve marcar a vida da igreja em todas as gerações. Nesta passagem vemos isso na prática (3x: 4.13, 29; 4.31). Depois de terem sido severamente ameaçados pelo mesmo grupo de homens que tinha orquestrado a crucificação de Jesus seis semanas antes, os seguidores de Jesus se reuniram e oraram. Os crentes pediram a Deus intrepidez renovada para proclamar a palavra de Deus. 

A proclamação da palavra de Deus com “intrepidez”, “ousadia” ou “coragem” (do grego, parrēsia, παρρησία), independentemente se envolve algum risco ou perigo, é um tema dominante em todo o livro de Atos (ver 2.29; 9.28; 13.46; 14.3; 18.26; 26.26; 28.31). Sem o auxílio de equipamentos modernos, meios de transporte, traduções e publicações da Bíblia, a intrepidez na proclamação evangelho da graça de Deus fez estremecer todo o império romano, a ponto de haver cristãos até mesmo na casa de César (Fl 4.22).  

Pedro e João estavam à frente dos homens que haviam orquestrado a morte de Jesus, mas não se intimidaram (4.19-20). Eles não recuaram diante de suas ameaças (4.21, 22). Os membros do Sinédrio ficaram impressionados com a firmeza e a coragem  dos apóstolos. Não se esperava que homens comuns e sem educação formal falassem com tanta confiança perante a suprema corte do país (4.13). Os líderes religiosos atribuíram a ousadia eloquência inesperada dos apóstolos ao facto de eles terem estado com Jesus (4.13). Os membros do Sinédrio acharam que estavam livres de Jesus, crucificando-o; mas agora enfrentavam seus porta-vozes que revelavam a mesma sabedoria e coragem de seu Mestre (Lc 21.15). 

A presença do homem curado no tribunal também causava incómodo (4.14). Não havia como negar a ocorrência do milagre, pois todos na cidade sabiam que o homem era coxo de nascença (3.1-10). O Sinédrio, no entanto, continuava a negar que o milagre tenha sido por causa do poder do Nome de Jesus Cristo. A principal preocupação deles era evitar o alcance e a influência da mensagem cristã (4.17). Eles não buscavam a verdade, mas uma forma para silenciá-la (4.15-18). Assim, os líderes decidiram proibir Pedro e João de falar de Jesus a outros em conversas particulares e pregar sobre ele publicamente (4.14-18).

Pedro e João estavam num conflito ético: “Julgai se é justo diante de Deus ouvir-vos antes a vós outros do que a Deus” (4.19). Apenas algumas semanas se passaram desde que os apóstolos ouviram as palavras de Jesus: “Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo” (Mt 28.19). Jesus deu a Pedro e a João e à igreja inteira uma ordenança. 

Os apóstolos, como testemunhas oculares de Jesus, devem actuar como testemunhas fiéis de acordo com a ordem de Jesus (“não podemos deixar de falar das coisas que vimos e ouvimos”, 4.20). Assim, decidiram tomar o caminho da desobediência obediente. Eles  desobedecem as leis humanas para obedecer a Jesus, que os incumbiu de serem “testemunhas tanto em Jerusalém, em toda a Judeia e Samaria, e até aos confins da terra” (1.8).

Embora Deus chame os cristãos para se submeterem às estruturas de autoridade que Ele ordenou para a Família, o Estado e a Igreja (Rm 13.1-7; 1 Pd 2.13-18), nossa obrigação para com o próprio Deus tem prioridade sobre os direitos do Estado ou de qualquer autoridade humana (At 4.19; Lc 14.26; Atos 5.29). Se qualquer autoridade debaixo do céu vem para um cristão e o proíbe de orar, pregar, adorar, ou fazer qualquer uma das coisas ordenadas por Deus, esse cristão não somente pode, mas deve desobedecer (At 5.29). 

É muito importante percebermos, em nossas vidas diárias, o que Deus ordena e o que ele proíbe, caso contrário, somos como ovelha sem pastor, e concordaremos com o que Nietzsche chamou de “moralidade de rebanho”, fazendo tudo que nos disserem para fazer, quando, de facto, há momentos em que o cristão tem que dizer não. Portanto, quando o intento de uma lei civil é contrário à lei de Deus, devemos registar nossas objeções junto às autoridades governamentais. Em todo o caso, os cristãos devem estar preparados para pagar o preço da perseguição (Mt 5.12).

O tribunal fez novas ameaças e depois soltou os apóstolos. Eles não haviam transgredido nenhuma lei. Também não parecia possível castigá-los, por causa do povo, porque todos glorificavam a Deus pelo que acontecera, especialmente porque o coxo que fora curado tinha mais de quarenta anos (4.21, 22). A reação dos líderes do Sinédrio é uma prova que os milagres, por si mesmos, não são capazes de convencer do pecado nem converter o pecador perdido. O conselho não queria que a mensagem do evangelho se propagasse em Jerusalém; no entanto, foi exatamente isso que aconteceu! 

A primeira perseguição dos apóstolos foi seguida de uma reunião de oração da igreja (4.23). O melhor método para enfrentar a oposição é sempre a oração. A igreja é o povo que busca a Deus em oração nas horas de dificuldades. Assim como em geral procuramos nossos familiares mais próximos depois de experiências significativas e graves, assim os apóstolos encontram amparo na “família de Deus” (4.23). Os cristãos eram unidos não apenas em sua oração, mas em sua mentalidade, desejos e missão (4.24).

Os crentes oraram, citando o Salmo 2 (4.25, 26). Inspirado pelo Espírito Santo, Davi previu uma conspiração internacional, na qual todos os governantes de todo o mundo se reuniriam para contestar o senhorio do Deus Todo-Poderoso e o seu Filho ungido. Quando Davi descreve essa cena da reunião de cúpula dos inimigos de Deus, diz: “Aquele que governa nos céus ri; o Senhor zomba deles.” (v. 4). Davi disse, mas somente por um momento, porque o divertimento de Deus transforma-se em ira, e diz, “Tu as quebrarás com vara de ferro e as despedaçarás como a um vaso de barro” (v. 9). Ele avisa-os, “Beijai o Filho, para que se não ire, e pereçais no caminho, quando em breve se acender a sua ira; bem-aventurados todos aqueles que nele confiam.” (Sl 2.12).

O Salmo 2 é interpretado à luz da paixão de Cristo. Os reis (Herodes e Pôncio Pilatos) e governantes (o Sinédrio, At 4.5) se reuniram com os gentios e os povos de Israel contra o Senhor e seu Ungido. Todos estavam juntos quando o objetivo é combater a Jesus! Tudo porém está de acordo com a mão e o plano de Deus (4.28; 2.23). Nada, nem mesmo a morte injusta do Filho de Deus, acontece à parte da vontade e controle soberano de Deus (At, 4.28; 2.23). O que os outros pretendiam para o mal, Deus trabalhou para o nosso bem (Gn 50.20). A crucificação de Jesus, que parecia o triunfo final do mal sobre o bem, foi na verdade o ponto culminante do plano de Deus para a nossa redenção (At 4.27-28). O Filho de Deus não teria sofrido nenhum arranhão se não fosse pelo conselho determinante do Pai, que ordenou desde toda a eternidade que o Filho sofreria nas mãos desses homens ímpios para o nosso bem (4.28). Deus não forçou os adversários de Jesus a engajarem-se em atos de violência contra a vontade deles. Em vez disso, Deus permitiu que conspirassem contra Ele a fim de poder consumar a salvação para o seu povo. A igreja primitiva não acreditava que estava nas mãos do acaso ou das autoridades judaicas e romanas, mas nas mãos do Deus Todo-poderoso, que governa soberanamente a história. Eles entendiam que a despeito de todas as ações antagónicas daquelas autoridades, Deus ainda estava no controlo.

Os crentes não se contentaram em seguir em frente com sua própria força. Eles perceberam sua necessidade de obter de Deus poder para testemunhar a Palavra de Deus com toda a intrepidez. Eles não oram pedindo alívio da perseguição (4.29). Não oram contra aqueles que os perseguem. Em vez disso, pedem coragem renovada para proclamar a palavra de Deus (4.29). 

Em vez de dizer: “Senhor, ajude-nos a ficar em silêncio”; o texto convida-nos a dizer: “Senhor, garanta que seus servos falem sua palavra com coragem e firmeza”. Em vez de dizer: “Senhor, não permita que esses evangelistas criem dificuldades”; o texto convida-nos a dizer: “Senhor, dê-nos mais evangelistas fiéis e intrépidos”.

Os crentes não hesitam em orar para que Deus faça milagres enquanto eles continuam a proclamar o evangelho (4.30, 31). Hoje, muitas igrejas parecem ortodoxas, mas não acreditam nas intervenções soberanas de Deus. Aquela igreja estava aberta para o extraordinário e o extraordinário aconteceu. O lugar onde estavam reunidos tremeu, como se fosse um terremoto; “e todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a anunciar com intrepidez a palavra de Deus” (4.31; At 5.42). Deus deu um sinal aos apóstolos de que assim como sacudiu a casa com um terremoto, assim também faria o mundo tremer com o evangelho de Cristo.

O texto informa que, novamente, todos foram cheios do Espírito Santo. Existe somente um batismo com o Espírito, que ocorre na conversão (1 Co 12.13; Ef 4.5; 1Co 10.2), mas o cristão pode receber a plenitude do Espírito repetidas vezes, a fim de dar testemunho eficaz de Jesus Cristo (Ef 5.18). 

Pedro estava entre eles e já havia sido “cheio do Espírito Santo” (2.4; 4.8, 31), e todos os os discípulos presentes no Pentecostes também foram “cheios” do Espírito” (2.4). Ser cheio do Espírito não é uma experiência de uma vez para sempre. Podemos ser cheios do Espírito Santo e, ao mesmo tempo, receber mais do Espírito Santo também (comp. 4.8 com 4.31). Foi apenas o próprio Jesus a quem o Pai deu o Espírito sem medida (Jo 3.34).

A Bíblia diz que nenhum de nós deve ficar bêbado, mas todos nós devemos ser cheios do Espírito Santo (Efésios 5.18). Paulo usa um verbo imperativo no tempo presente que poderia ser traduzido de uma forma mais explícita: “Ser continuamente cheio do Espírito Santo”, o que implica que isso é algo que deveria estar acontecendo repetidamente com os cristãos. Nós que já temos o Espírito, que fomos baptizados pelo Espírito no corpo de Cristo, também devemos ser cheios do Espírito (1 Co 12.13, 10.2). Esse enchimento resultará em maior santificação, intrepidez e poder para o exercício do ministério.

Satanás tem procurado calar o povo de Deus desde o princípio. Infelizmente, no caso de muitos cristãos, ele é bem-sucedido ao transformá-los em "testemunhas silenciosas" dentro da Igreja. Quando o livro do Apocalipse fala do julgamento final de Deus, menciona aqueles a quem Deus enviará para o lago de fogo – os assassinos, os adúlteros e os covardes. Se há algo que caracteriza a igreja no começo do século 21, é a covardia. Se algo nos diferencia da igreja do 1° século, é a nossa falta de ousadia. Precisamos proclamar o evangelho com a coragem que caracteriza um cristão convicto da ressurreição de Cristo. Podemos experimentar a mesma mudança que ocorreu naqueles homens se transformaram de homens medrosos em santos intrépidos. Precisamos tomar uma posição firme diante das tendências do mundo às vezes requer tanta coragem quanto enfrentar os perseguidores e suas ameaças.

 

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Pastor Leonardo Cosme de Moraes