Um milagre na Porta Formosa

 Atos 3.1-11


Uma das glórias do livro de Atos é que ele não se restringe ao ensino didático. Ele conta histórias e dá exemplos de tudo o que põe diante de nós teoricamente. Ele dá-nos o evangelho em ação, como algo vivo e real. Sempre há o perigo de pensarmos no cristianismo como algo abstrato e intelectual. Entretanto, embora devamos conhecer a teoria, e devamos ter o entendimento, nunca devemos esquecer que primeiro e acima de tudo a  cristã lida com a vida e com o viver, e que ela é o poder mais revolucionário que o mundo já conheceu (Lloyd-Jones, 1999).

 

Lucas iniciou o livro de Atos informando aos leitores que iria relatar o que Jesus continuou "a fazer e ensinar", após a ascensão, através de seus apóstolos (1.1-2). Este primeiro milagre, após a inauguração da igreja cristã, testifica a autoridade da palavra de Jesus por meio de Seus apóstolos (At 3.1-10). Jesus está agora a trabalhar por meio de seus representantes apostólicos. O que Jesus iniciou durante o seu ministério terreno tem agora prosseguimento por meio de seus seguidores imediatos.

 

Os versículos iniciais particularizam a descrição geral da comunidade de crentes encontrada no resumo narrativo anterior, em que "muitos sinais e maravilhas eram feitos por meio dos apóstolos" (2.43) e os crentes estavam diariamente "reunidos juntos no templo” (2.46). Agora, em Atos 3.1-10, vemos um exemplo especialmente dramático.

 

Pedro e João estavam indo ao templo à hora da oração, às 3 horas da tarde. Para os judeus devotos, havia três turnos de oração por dia: às 9 da manhã, ao meio-dia e às 3 da tarde (Sl 55.16, 17). A chegada dos apóstolos ao templo coincidiu com a chegada de um coxo que era levado ali para que pudesse pedir esmolas aos que vinham adorar no Templo. 

 

O texto apresenta-nos um homem que nasceu coxo (3.2). Tinha quarenta anos de idade (At 4.22), e nunca tinha andado em sua vida. Todos os dias ele era carregado à porta do templo chamada Formosa, e ali ficava sentado, pedindo esmola, o que significa que ele era um mendigo (3.2). A maioria dos estudiosos considera a porta chamada Formosa como sendo a porta de Nicanor, revestida de bronze de Corinto, que separava o recinto do templo do pátio dos gentios. 

 

O versículo 3 informa que o homem viu Pedro e João entrando no templo e implorou que lhe dessem uma esmola. A reação humana mais normal à presença de um pedinte é desviar o olhar, como se a pessoa não existisse. Mas quando Pedro e João chegaram fizeram contato visual com ele, e enfatizaram esse contato visual dizendo-lhe: “Olha para nós”. O coxo volta sua atenção para eles na esperança de receber algo. A resposta de Pedro é enfática e contém uma surpresa. Pedro disse: “Não possuo nem prata nem ouro, mas o que tenho, isso te dou: em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, anda!” (3.6). Quando Pedro disse: “Não possuo prata nem ouro”; ele provavelmente tenha pensado, “Bem, então por que está a olhar para mim e por que pediu-me para olhar para ti? Você encheu meu coração de expectativa somente para me dizer que não tem nenhum dinheiro. A serviço de Jesus, Pedro não era um homem rico (Mt 10.9,10; 1Co 9.14). Pedro não tinha dinheiro no bolso, mas era um “apóstolo” de Cristo, e como tal, poderia dar o que as pessoas mais ricas de Jerusalém não conseguiam compensar com seu dinheiro. “Mas o que tenho, isso te dou: em nome de Jesus, o Messias, o Nazareno, anda!”

 

De seguida ocorre um evento surpreendente (3.7). “O coxo pediu uma esmola, mas recebeu pernas novas” (MacDonald, 2011). Pedro estendeu a mão e o ajudou a ficar em pé; “imediatamente, os seus pés e tornozelos se firmaram”. De um salto, o coxo de nascença levantou-se e começou  andar. O milagre da cura foi imediato, e não gradual. O que normalmente levaria meses por causa da atrofia muscular ocorre instantaneamente e completamente. Ele então caminha, salta e louva a Deus, desfrutando do dádiva de sua nova habilidade (3.8). Quando nos lembramos do processo lento e difícil pelo qual uma criança passa a fim de aprender a andar, percebemos como foi extraordinário esse homem saltar e andar de imediato, pela primeira vez na vida. Ele também profere palavras de louvor e agradecimento a Deus e deseja acompanhar os apóstolos para dentro do pátio do templo. Sua cura o permite entrar no templo pela primeira vez (cf.: Lv 21.17–20; 2 Sm 5.8 proibia sua entrada como um homem coxo). 

 

Então uma reação de espanto toma conta de todos. A vista daquele que antes fora coxo, saltando e louvando a Deus, era prova suficiente, diante da multidão, de que verdadeiramente ele tinha sido curado. Era uma pessoa tão bem conhecida, depois de tantos anos a pedir esmolas nas entradas do templo, que não poderia haver dúvida acerca da sua identidade e, portanto, acerca da realidade da cura (3.9-10).

 

Este milagre surpreendente de curar um homem coxo de nascença reúne uma multidão de curiosos e prepara-os para ouvir às boas-novas de Jesus Cristo. O pregação que Pedro fez a seguir explica o motivo do milagre (3.12-26).

 

Implicações práticas:

1. O que é milagre? Por definição, um milagre não pode ser explicado em termos naturais. No milagre as leis da natureza não são quebradas, porém Deus age acima delas. É o mesmo Deus que age no milagre e, também, de maneira natural. Deus fez o universo de tal modo que normalmente as coisas acontecem de acordo com o que chamamos “leis da natureza”. Normalmente Deus cura por meios indiretos, por meio de médicos e medicamentos, porém às vezes cura sem eles. Cura diretamente. Deus não é limitado por Suas leis. Ele as fez, e às vezes prefere agir independentemente delas. Quando ocorre um milagre, Deus age de diferente maneira — não pondo de lado Suas leis, mas agindo sem elas.

 

2. Por que acontecem milagres? Um milagre é um sinal de autenticação que aponta para Deus (seu poder e misericórdia) e para os porta-vozes de Deus e suas respectivas mensagens (Êx 4.5, 31; 10.2; Dt 4.34,35; 1 Rs 17.24; 18.36; Mt 21.11; Lc 3.18; 4.43; 7.22; Jo 3.2; 4.19; 20.30; At 2.22, 5.12-16; 6.8, 8.6, 10; 9.36-42; Gl 3.1-5; 2 Co 12.12; 1 Ts 2.13). A respeito da singularidade e da extraordinária frequência dos sinais e prodígios  nos ministérios de Jesus e dos apóstolos, a epístola aos Hebreus adverte: “como escaparemos nós, se negligenciarmos tão grande salvação? A qual, tendo sido anunciada inicialmente pelo Senhor, foi-nos depois confirmada pelos que a ouviram; dando Deus testemunho juntamente com eles, por sinais, prodígios e vários milagres e por distribuições do Espírito Santo, segundo a sua vontade.” (Hb 2.3-4).

 

3. Três verdades podem ser destacadas com respeito a esses dois apóstolos: (a) Eles eram homens de oração (3.1). A oração era prioridade na vida dos apóstolos. (b) Eles eram imitadores de Cristo (3.2–7). Pedro fitou o paralítico e lhe disse: Olha para nós (3.4). Nós costumamos dizer: “Não olhe para nós; olhe para Jesus”. Mas a Palavra de Deus diz que somos cartas de Cristo (2Co 3.2). O apóstolo Paulo diz: Sede meus imitadores, como também eu sou de Cristo (1Co 11.1). Pedro e João disseram ao paralítico: Olhe para nós (3.4). Será que podemos dizer ao mundo: Olhe para nós? Os pais podem dizer aos filhos: Olhem para nós? Na igreja primitiva não havia separação entre o discurso e vida, entre doutrina e prática, entre fé e fidelidade. (c) Eles demonstravam compaixão, e não apenas religiosidade. Não agiram como o sacerdote e o levita da parábola do bom samaritano. Eles fitaram os olhos no paralítico, trataram-no como gente (Lopes, 2012).

 

4.  A cura foi em nome de Jesus (3.6). “Em nome de Jesus” significa aqui: “pela autoridade de Jesus”. Pedro disse às autoridades do povo e aos anciãos que questionavam a fonte do poder que trouxera saúde ao paralítico: Tomai conhecimento, vós todos e todo o povo de Israel, de que, em nome de Jesus Cristo, o Nazareno […], é que este está curado perante vós (4.10). O poder da cura está no nome de Jesus e não em Pedro. O texto é claro: À vista disto, Pedro se dirigiu ao povo, dizendo: Israelitas, por que vos maravilhais disto ou por que fitais os olhos em nós como se pelo nosso próprio poder ou piedade o tivéssemos feito andar? (3.12).

 

5. A cura foi realizada mediante a fé (3.16). “Pela fé em o nome de Jesus, é que esse mesmo nome fortaleceu a este homem que agora vedes e reconheceis; sim, a fé que vem por meio de Jesus deu a este saúde perfeita na presença de todos vós.” (3.16). Foi o nome de Jesus (tudo o que ele é e fez), juntamente com a fé que vem Dele, que deu a este homem saúde perfeita. O próprio Jesus transmite este tipo de fé aos corações das pessoas. O nome de Jesus não é uma fórmula mágica que "funciona" à parte da fé Nele (19.13-16). Neste caso, foi o ato de fé dos apóstolos o instrumento da cura do paralítico, pois ele estava totalmente passivo nesse processo. 

 

 

6. Este milagre pode ser visto como uma figura daquilo que a Igreja existe para realizar. A comissão da igreja é: “O que tenho isso te dou. Em nome de Jesus Cristo o Nazareno, levanta-te e anda.” A Igreja não existe para falar de política, para tocar música, para produzir arte, ou para prover melhoramento social ou tratamento psicológico. A Igreja não é um centro cultural ou uma clínica psicológica. Não, a sua vocação, a sua comissão, é tratar das almas dos homens e das mulheres, das causas da sua paralisia espiritual. A dificuldade dos homens e das mulheres é a sua pecaminosidade. Não é falta de conhecimento; há muito disso. Teoricamente os homens e as mulheres sabem que a guerra é loucura, porém isso não impede as suas lutas. Eles sabem muito bem que tomar bebidas alcoólicas em excesso é pura imprudência, mas eles fazem isso. Sua dificuldade é esta paralisia da alma, é sua alienação de Deus (Lloyd-Jones, 1999).

 

O problema do mundo é que os homens e as mulheres não conhecem a Deus, não sabem viver e não sabem morrer. E a Igreja existe para lhe dizer o que você precisa saber acima de tudo mais, como a sua alma pode ser redimida e posta em boas relações com Deus; como você pode ser posto firme sobre os seus pés, como a paralisia pode ser curada. Essa é a mensagem singular da Igreja. É isso que diferencia a igreja de todas as outras instituições existentes debaixo do sol. 

 

E como, então, a Igreja faz isso? Pedro disse: “Não tenho prata nem ouro; mas o que tenho isso te dou” - e então - “Em nome de Jesus Cristo o Nazareno, levanta-te e anda”. Eis a mensagem: Jesus Cristo, o Nazareno. Pedro tomou a iniciativa de levar Jesus a alguém que precisava dele. A obra de Jesus mudou a vida desse homem para sempre. Este é o trabalho da igreja neste mundo: Levar Jesus as pessoas. Quem sabe, tomando-as pela mão, e levando-as para conhecer o caminho da salvação em Cristo. 

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Referências: Boor, W. 2002. Comentário Esperança, Atos dos Apóstolos. Curitiba: Editora Evangélica Esperança, p. 64–74. / Bock, D. L. 2007. Acts: Baker Exegetical Commentary on the New Testament. Grand Rapids, MI: Baker Academic. / Carson, D. A. 2018. NIV Biblical Theology Study Bible. Grand Rapids, MI: Zondervan, p. 1958-1959. / Crossway Bibles. 2008. The ESV Study Bible. Wheaton, IL: Crossway Bibles, p. 2086–2087. / Kistemaker, S. Atos, vl. 1: Comentário do Novo Testamento. SP: Editora Cultura Cristã, 2016), 159–187. / Lloyd-Jones, M. 1999. Cristianismo autêntico, vl. 1: sermões no livro de Atos dos Apóstolos. SP: PES, p. 286-304. / Lopes, H. D. 2012. Atos: A Ação do Espírito Santo na Vida da Igreja: Comentários Expositivos Hagnos. SP: Hagnos, p. 73–88. / MacDonald, W. 2011. Comentário Bíblico Popular: Novo Testamento. SP: Mundo Cristão, p. 344–346. / Marshall, I. H. 1980. The Acts o f the Apostles, an Introduction and Commentary. London: Inter-Varsity Press, p. 87-96./ Mikeal C. 2008. Parsons, Acts, Paideia Commentaries on The New Testament. Grand Rapids, MI: Baker Academic, p. 53–58. / Sproul, R. C. 2017. Estudos Bíblicos Expositivos em Atos. SP: Editora Cultura Cristã, p. 60–66. / Stott, J. 1994. A Mensagem de Atos: Até os confins da terra. SP: ABU, p. 97-105.

 

Pastor Leonardo Cosme de Moraes