Em Atos 6 e 7 encontramos o relato do
ministério e martírio de Estêvão, um homem que seguiu o exemplo de Cristo em
sua vida e também em sua morte. Seu martírio marcou o fim de uma era. Desde
então a nova comunidade de Deus se tornou completamente separada do judaísmo
tradicional.
O exemplo de Estevão. Estêvão era homem piedoso e de boa reputação (6.3).
Não havia um abismo entre sua vida e suas palavras. Estêvão era cheio do
Espírito Santo (6.3,5). Todo homem está cheio de alguma coisa. Está cheio do
Espírito ou de si mesmo. Está cheio de Deus ou de pecado. Estêvão era cheio de
fé (6.5), de sabedoria (6.3) e de poder (6.8, 9). Esta é a primeira referência
em Atos a alguém, além dos apóstolos, realizando “prodígios e sinais” (6.8).
Estevão era um exímio pregador (6.10–14). Embora tenha sido eleito para a
diaconia das mesas, ele pregou com autoridade, exercendo também a diaconia da
palavra.
Estevão fazia coisas maravilhosas no
meio do povo, mas havia entre eles um grupo da sinagoga dos escravos libertos
(composta de judeus helenistas) fazia oposição a sua pregação (6.8-10). Eles
não eram capazes de resistir à sabedoria ou ao espírito pelo qual ele falava.
Quando perceberam que não seriam capazes de aniquilar seus argumentos, eles
passaram a usar meios corruptos com o fim de silenciá-lo. Eles encontraram
algumas pessoas dispostas a prestar falso testemunho contra Estevão. Uma a uma
as falsas testemunhas vieram e o acusaram. Diziam: “Temos ouvido este homem
proferir blasfêmias contra Moisés e contra Deus” (6.11). Eles incitaram o povo,
os anciãos e os escribas a investirem contra ele, e apoderando-se dele o
levaram até o conselho. Novamente apresentaram falsas testemunhas que disseram:
“Este homem não cessa de falar contra o lugar santo e contra a lei; porque o
temos ouvido dizer que esse Jesus, o Nazareno, destruirá este lugar e mudará os
costumes que Moisés nos deu” (6.13–14).
Tais acusações estavam relacionadas às
afirmações cristãs de que a morte sacrificial de Jesus completa e cumpre o
sistema sacrificial do templo (Hb 10.1-4, 11-14) e que Jesus e seu corpo, a
igreja, representam o novo templo de Deus (Lc 20.17; 1 Co 3.16; Ef 2.20–22).
Além disso, a afirmação cristã de que a salvação vem por meio da fé em Cristo e
não pela obediência a soma total dos mandamentos de Deus (Rm 3.28; Gl 2.16, Rm
10.4; Mt 5.17), estava relacionada com a suposta anulação de Jesus dos
preceitos cerimoniais da Velha Aliança (Mc 7.19; Lc 6.5, 7; 13.14; Mt 12.6).
Estêvão, portanto, estava alinhado com a mesma interpretação de Jesus (Jo 2.19;
Mc 14.58; 15.29).
Estevão era um homem que refletia a
glória da presença de Deus (6.15). Lucas faz uma observação final entre parênteses:
“Todos os que estavam assentados no Sinédrio, fitando os olhos em Estêvão,
viram o seu rosto como se fosse rosto de anjo” (7.15).
Há algo semelhante descrito em outro
lugar da Escritura. O Velho Testamento regista quando Moisés subiu ao monte e
falou com Deus, quando perguntou se poderia ver a Glória de Deus (Ex 33.20–23).
Moisés teve uma visão instantânea de Deus pelas costas, e de repente, a face de
Moisés resplandecia com tal intensidade que cegava os que olhavam para ele.
Essa luz na face de Moisés era reflexo da glória que surgira por haver ele
estado na presença de Deus.
Deus deu a Estêvão, acusado de se opor
à lei, o mesmo rosto radiante dado a Moisés quando este recebeu a lei (Êx
34.29). Uma evidência que tanto o ministério da lei de Moisés quanto a
interpretação de Estêvão tinham a aprovação de Deus (Lopes, 2012). Era como se
Deus estivesse dizendo: “Este homem não é contra Moisés; ele é como Moisés!”.
Por conseguinte, a multidão alvoroçada
arrastou Estêvão até o Sinédrio. “Então, lhe perguntou o sumo sacerdote:
Porventura, é isto assim?” (7.1). Estevão, você realmente proferiu blasfémias
contra Moisés, contra Deus e a lei? A título de resposta, Estevão deu-lhes uma
lição sobre a história da redenção (7.2-53).
O discurso de Estêvão resume os
capítulos mais importantes da história de Israel: o período patriarcal, o cativeiro no Egito, o êxodo, a
outorga da lei, a monarquia, a construção do templo e a vinda do Messias. O
discurso tem quatro partes principais: (1) a chamada de Abraão (7.2-8), (2) a
história de José (7.9-16), (3) Moisés e a libertação do Egito (7.17–44), e (4)
um resumo da conquista de Canaã até Salomão (7.45–47).
O relato de Estevão sobre a história
judaica foi apresentado diante dos líderes em sua defesa. O discurso tem dois
temas centrais:
(1) O Deus de Israel não se restringe a
um lugar (7.48-50). O Deus da glória apareceu a Abraão enquanto esse ainda
estava na Mesopotâmia pagã (7.2); Deus estava com José mesmo quando ele ainda
era escravo no Egito (7.9); Deus foi ao encontro de Moisés no deserto de Midiã,
e assim transformou aquele lugar em terra santa (7.30,33);
apesar de no deserto Deus ter andado de tenda em tenda (1Cr
17.5), não habita o Altíssimo em casas feitas por mãos humanas (7.48). É,
portanto, evidente, com base nas próprias Escrituras, que a presença de Deus
não pode ser restrita a um local, e que nenhum edifício pode confiná-lo ou
inibir sua atividade. O trono de Deus está no céu, e não numa casa feita por
mãos humanas (Is 66.1–2). Deus está presente em todos os lugares e a terra
santa está em qualquer lugar onde Deus está (Stott, 2008:150-156).
(2) Israel rejeitou repetidamente os
mensageiros de Deus, culminando em sua rejeição ao Messias (7.52). A grande
diferença entre os profetas da antiguidade e Jesus é que eles falaram do Justo
que viria, ao passo que Jesus é o Justo. Como declarou Estevão que os
israelitas possuíam a palavra de Deus e a forma externa do culto, mas eram
“incircuncisos de coração e ouvidos” (7.51). “Eles mataram os que anteriormente
anunciavam a vinda do Justo, do qual vós agora vos tornastes traidores e
assassinos, vós que recebestes a lei por ministério de anjos e não a
guardastes. Ouvindo eles isto, enfureciam-se no seu coração e rilhavam os
dentes contra ele.” (7.52-54).
Encontramos o mesmo padrão em todas as
gerações. As pessoas não mudam. Quando são confrontadas com a mensagem de Deus,
não a compreendem (25). Quando são instadas a viver em paz, recusam-se a ouvir
(27). Quando Deus envia um libertador, rejeitam-no (39). Quando são resgatadas
de uma situação precária, preferem ídolos inúteis ao Deus misericordioso (41).
Assim é a natureza humana: rebelde, ingrata, insensata (MacDonald, 2011:354).
A visão de Estevão. Lucas informa que ele “fitou os olhos no céu e viu a
glória de Deus e Jesus, que estava à sua direita” (7.55). Ele tinha acabado de
dar testemunho de Jesus, e no momento que antecede seu martírio, fitou os olhos
no céu e viu Jesus em pé à destra de Deus.
Estevão estava tomado pela visão, e
dirigiu seu olhar fixo de volta ao grupo e contou-lhes o que estava vendo. “Eis
que vejo os céus abertos e o Filho do Homem, em pé à destra de Deus!” (7.56). A
grande honra que o Pai confere ao Filho é que ele é coroado, entronizado e lhe
é dada toda autoridade no céu e na terra. Ele se assenta na posição de domínio;
o Filho do Homem é o juiz celestial. Posteriormente no livro de Atos, Paulo diz
aos atenienses que Deus estabeleceu um dia em que há de julgar o mundo através
de Cristo, e todos estarão lá. Como crentes, já não seremos mais condenados,
mas mesmo assim teremos de comparecer perante o tribunal de Cristo (At 17.31; 2
Co 5.10; Rm 14.10).
Estevão estava num julgamento por sua
vida, diante da suprema corte de Israel, e olhando para cima, viu Jesus de pé,
e não sentado, à mão direita de Deus. Ele viu os céus abertos, e o Juiz do céu
e da terra posicionando-se em sua defesa e para recebê-lo na glória celestial.
Se você está em Cristo, você o tem como seu advogado diante do Pai. Se não,
você o terá simplesmente como seu juiz (Sproul, 2017, 17-18).
O martírio de Estevão. Após Estevão contar-lhes o que vira, “Eles, porém,
clamando em alta voz, taparam os ouvidos e, unânimes, arremeteram contra ele”
(7. 57) e o arrastaram para fora da cidade até o lugar de apedrejamento. As
“testemunhas deixaram suas vestes aos pés de um jovem chamado Saulo” (7.58),
que foi cúmplice nesse ato impiedoso (7.58b; 8.1a; cf. 26.10-11).
A multidão apanhou pedras e, com todas
as suas forças, começaram a atirar as pedras na face, peito e cabeça de
Estevão. Primeiro, ele foi golpeado, desfigurado e moído. Tal execução
infringia a lei romana, uma vez que as autoridades romanas mantiveram a
jurisdição para crimes capitais (Jo 18.31).
Em meio a sua dor, ele invocou a Jesus
e pediu duas coisas: “Senhor Jesus, recebe o meu espírito” e “Senhor, não lhes
imputes este pecado” (7.59–60). Ambas as falas de Estevão foram exatamente as
mesmas do seu Salvador que o antecedeu, e tendo dito isso, ele deu seu último
suspiro. Sua confiança diante da morte e sua misericórdia para com seus
inimigos é impressionante (Lc 6.27-28).
Deus ouviu a oração de Estevão. Mais tarde, este Saulo será usada por Deus para
proclamar o evangelho mais amplamente do que qualquer outra pessoa na igreja
primitiva. O perseguidor da igreja logo se tornaria seu mais famoso defensor.
Temos aqui um vislumbre da glória da graça de Deus na salvação dos pecadores
(1Tm 1.15).
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Referências: Beeke, J., Barrett, M. P. V. e Bilkes, G. M., eds. The Reformation Heritage KJV Study Bible. Grand Rapids, MI: Reformation Heritage Books, 2014, p. 1569–1570. / Carson, D. A., ed. NIV Biblical Theology Study Bible. Grand Rapids, MI: Zondervan, 2018, p. 1966–1967. / Holcomb, J. S. Atcs. Gospel Transformation Bible: ESV. Wheaton, IL: Crossway, 2013, p. 1464. / Lopes, H. D. Atos: A Ação do Espírito Santo na Vida da Igreja: Comentários Expositivos Hagnos. SP: Hagnos, 2012, 141–164. / MacDonald, W. Comentário Bíblico Popular: Novo Testamento. SP: Mundo Cristão, 2011, 352–355. / Pearlman, Myer. Atos, a igreja primitiva na força e na unção do Espírito. RJ: CPAD, 1995, p. 79-89. / Sproul, R. C. Estudos Bíblicos Expositivos em Atos. SP: Cultura Cristã, 2017, p. 111–118. / Stott, John. A mensagem de Atos: até os confins da terra. SP: ABU, 2008: 139-158.
Pr Leonardo Cosme de Moraes