NOTA EXEGÉTICA
Cântico dos Cânticos 2.7
Texto: הִשְׁבַּעְתִּי אֶתְכֶם בְּנוֹת יְרוּשָׁלִַם בִּצְבָאוֹת אוֹ בְּאַיְלוֹת הַשָּׂדֶה אִם־תָּעִירוּ וְאִם־תְּעוֹרְרוּ אֶת־הָאַהֲבָה עַד שֶׁתֶּחְפָּץ
(Cântico dos Cânticos de Salomão 2.7, Bíblia Hebraica Stuttgartensia).
Análise
Aqui temos uma típica fórmula hebraica de juramento negativo em que o falante exorta seu público a fazer um voto de não fazer algo que teria consequências destrutivas: A expressão הִשְׁבַּעְתִּי (hishba'ti, “Conjuro-vos”) é usado quando um orador exorta seu público a fazer um juramento.
Frequentemente, quando os juramentos eram feitos no mundo antigo, testemunhas eram invocadas para solenizar o voto e agir como juristas, caso o juramento algum dia fosse quebrado. Neste caso, as “testemunhas” são as “gazelas e cervas do campo” (2.7; 3.5). Estes animais eram frequentemente usados como símbolos de amor romântico no AT (Pv 5.19). Assim, as “gazelas” e “cervas do campo (ou selvagens)” seriam zoomorfismos para o amor personificado. Noutras palavras, o testemunho deste juramento é o próprio “amor”. Se as filhas violarem este voto que são solicitadas a fazer, o próprio “amor” as responsabilizará. Alguns especialistas na língua hebraica (como Sheri L. Klouda), destacam que a palavra para ‘gazelas’ é semelhante à palavra hebraica tseva’ot (בִּצְבָאוֹת), ’exércitos’, que era usada na identificação tradicional ‘Yahweh (יהוה = YHWH) dos exércitos’. Caso seja uma imitação intencional de uma invocação divina, esta seria uma paráfrase para evitar jurar em nome do Senhor.
Os termos ָתּעִירוּ (ta'iru, "despertar"; imperativo Hiphil de עוּר) e תְּעוֹרְרוּ (té'oréru, "provocar"; Polel imperativo de עוּר) são provavelmente expressões figurativas (hipocatástase) em vez de literais, porque o objeto não refere-se a uma pessoa (o amante), mas a um estado emocional (“amor”). Estas expressões traçam uma comparação implícita entre a ação literal de despertar uma pessoa do sono e provocá-la à uma ação estimulada, com a imagem figurativa dum amante despertando e provocando o desejo sexual de sua amada. Portanto, a tradução proposta pela Nova Versão Internacional corresponde perfeitamente ao sentido do texto na língua hebraica: “não despertem nem provoquem o amor enquanto ele não o quiser” (2.7). A versão Almeida Século 21 vai no mesmo sentido: “não acordeis nem provoqueis o amor até que ele o queira” (2.7)
A função sintática do artigo sobre הָאַהֲבָה (ha’ahavah, "amor") é debatida. A razão disso pôde ser parcialmente sentida na aula desta manhã (Domingo, 11/10/20). A maioria das traduções entende a função do artigo sobre ha’ahavah (“amor”) como um artigo que denota um conceito abstrato. No entanto, algumas traduções (por exemplo: KJV, BPT, RCF, JB, NEB), vêem-no como um uso abstrato do artigo para o concreto, e o traduzem como "meu amor", referindo-se tanto aos próprios sentimentos da mulher quanto aos sentimentos de seu amante. Ao longo de Cântico dos Cânticos, o termo אַהֲבָה ('ahavah, "amor") não é usado como um termo afetuoso em referência a um dos amantes; normalmente refere-se ao amor físico/sexual (Cântico 2.4, 5, 7; 3.5; 5.4; 8.4, 6, 7). A referência ao desejo sexual em 2.4-5, e חוֹלַת אַהֲבָה (kholat ’ahavah, "doente de amor”) em 2.5, sugere que o uso de אַהֲבָה ("amor") em 2.7 é desejo sexual.
Comparação de traduções portuguesas
Leia abaixo as versões de Cantares 2.7 e atente para as diferenças sintáticas, “meu amor/amado”, no lado esquerdo do quadro, e “o amor”, no lado direito. As traduções portuguesas versam o texto hebraico das duas formas. Tomei nota destas diferenças durante a aula desta manhã, mas era impossível dar uma resposta adequada e técnica sem verificar o texto na língua original.
Ó filhas de Jerusalém, conjuro-vos, pelas gazelas e cervas dos bosques, que não acordem o meu amado. Deixem-no dormir! (BPT) | Mulheres de Jerusalém, eu as faço jurar pelas gazelas e pelas corças do campo: não despertem nem provoquem o amor enquanto ele não o quiser (NVI) |
Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém, pelas gazelas e cervas do campo, que não desperteis e nem acordeis o meu amor, até que ele queira (KJF) | Ó filhas de Jerusalém, pelas corças e gazelas do campo eu vos conjuro: não desperteis, não acordeis o amor, até que ele o queira! (KJA). |
Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém, pelas gazelas e cervas do campo, que não acordeis nem desperteis o meu amor, até que queira. (RC). | Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém, pelas gazelas e cervas do campo, que não acordeis, nem desperteis o amor, até que este o queira (ARA) |
Moças de Jerusalém, eu proíbo, pelas gazelas e cervas do campo, que vocês acordem o meu amado. Deixem que ele durma! (BV) | Mulheres de Jerusalém, eu as faço jurar pelas gazelas e pelas corças do campo: não despertem nem provoquem o amor enquanto ele não o quiser (NVT). |
Comentário simplificado
- A expressão deste verso (Cantares 2.7) reaparece em 3.5 e 8.4. Cada refrão segue uma descrição da consumação da relação conjugal. À luz da natureza consumidora do amor, conforme descrito em 2.3-6, a esposa procurou desencorajar as jovens de evolverem-se prematuramente num relacionamento sexual. A admoestação promove a castidade e o autocontrole. Portanto, temos neste refrão um lembrete de que o acto sexual deve aguardar o momento certo com a pessoa certa. O contexto mais amplo das Escrituras indica que o momento certo é o casamento, e a pessoa certa é seu cônjuge.
- Por mais atraente que seja o amor, ele não deve ser forçado ou apressado, daí a conjuração da mulher às filhas neste versículo. É claro que o casal já está apaixonado, mas deve permitir que seu amor prossiga em seu ritmo adequado, o que inclui esperar até o momento certo para consumá-lo (no casamento).
Análise teológica
- A Bíblia não condena o sexo, apenas o sexo pervertido (1 Coríntios 6.18; Gálatas 5.19). Deus criou o sexo (Gn 1.27) e ordenou que fosse desfrutado dentro dos limites do casamento monogâmico e sob um relacionamento de amor (confira Provérbios 5.18-19).
- Depois de advertir àqueles que proíbem o casamento (1 Timóteo 4.3), o apóstolo declara que "tudo que Deus criou é bom" (4.4), e prossegue falando do Deus "que tudo nos proporciona ricamente para nosso aprazimento" (6.17). O livro de Hebreus destaca que "digno de honra entre todos seja o matrimônio, bem como o leito sem mácula; porque Deus julgará os impuros e adúlteros" (Hb 13.4).
- Deus tem consciência de que as pessoas normais têm desejos sexuais, mas ele acrescenta: "mas, por causa da impureza, cada um tenha a sua própria esposa, e cada uma, o seu próprio marido" (1 Coríntios 7.2). Assim, o sexo em si não é pecado, assim como os desejos sexuais também não o são. Deus os criou com a pretensão de que fossem desfrutados dentro dos laços de amor de um casamento monogâmico. O Cântico dos Cânticos de Salomão é um exemplo de como o amor conjugal deve expressar-se no casamento, dado com a autoridade divina.
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Apêndice: Alguém mencionou a expressão “harém de Salomão” e apercebi-me da necessidade de fazer um esclarecimento adicional.
Estimados irmãos, apenas porque a Bíblia relata o pecado de poligamia praticado por Salomão, não significa que Deus a aprove.
Não seria necessário comentar Cantares 6.8, uma vez que o versículo 9 já resolve a questão com relativa clareza. Todavia, se este texto faz referência directa ao Rei Salomão, então temos aqui um tópico que exige-nos estudo detalhado.
O livro Cântico dos Cânticos menciona “sessenta rainhas, oitenta concubinas (= esposas secundárias) e incontáveis virgens" (Cantares 6.8) como parte do “harém de Salomão”. Posteriormente, conforme lemos em 1 Reis 11.1, este número aumentou. A pergunta que se faz é a seguinte: por que Deus permitiu que Salomão tivesse tantas mulheres, se ele condena a poligamia?
A monogamia é o padrão de Deus para os homens. Isto está claro pelos seguintes factos: (1) Desde o princípio Deus estabeleceu este padrão ao criar o relacionamento monogâmico de um homem com uma mulher, Adão e Eva (Génesis 1.27; 2.21-25). (2) Esta ficou sendo a prática geral da raça humana (Génesis 4.1), seguindo o exemplo estabelecido por Deus, até que o pecado a interrompeu (Génesis 4.23). (3) A Lei de Moisés claramente ordena: "Tampouco para si multiplicará mulheres" (Deuteronómio 17.17). (4) A advertência contra a poligamia é repetida na própria passagem que dá o número das muitas mulheres de Salomão (1 Reis 11.2): "Não caseis com elas, nem casem elas convosco". (5) Jesus reafirmou a intenção original de Deus ao citar esta passagem (Mateus 19.4) e ao observar que Deus "os fez homem e mulher" e os juntou em casamento. (6) O NT enfatiza que "cada um tenha a sua própria esposa, e cada uma, o seu próprio marido" (1 Coríntios 7.2). (7) De igual forma, Paulo insistiu que o líder da igreja deveria ser "esposo de uma só mulher" (1 Timóteo 3.2; 12). (8) Na verdade, o casamento monogâmico é uma prefiguração do relacionamento entre Cristo e sua noiva, a Igreja (Efésios 5.31-32).
A poligamia nunca foi estabelecida por Deus para nenhum povo, sob circunstância alguma. De facto, a Bíblia revela que Deus puniu severamente aqueles que a praticaram, como se pode ver pelo seguinte (Geisler): (1) A primeira referência à poligamia ocorreu no contexto de uma sociedade pecadora em rebelião contra Deus, na qual o assassino “Lameque tomou para si duas esposas" (Génesis 4.19,23). (2) Deus repetidamente advertiu ou polígamos quanto às consequências de seus atos: “para que o seu coração se não desvie" de Deus (Deuteronómio 17.17; cf. 1 Reis 11.2). (3) Deus nunca ordenou a poligamia como o divórcio, ele somente a permitiu por causa da dureza do coração do homem (Deuteronómio 24.1; Mateus 19.8). (4) Todo praticante da poligamia na Bíblia, incluindo Davi e Salomão (1 Crónicas 14.3), pagou um alto preço por seu pecado. (5) Deus odeia a poligamia, assim como o divórcio, porque ela destrói o seu ideal para a família (Malaquias 2.16).
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Referências:
Anon, 1990. Biblia Hebraica Stuttgartensia, Stuttgart: German Bible Society; Westminster Seminary.
Anon, 2017. The Lexham Analytical Lexicon of the Hebrew Bible.
Biblical Studies Press, 2006. The NET Bible First Edition Notes. Biblical Studies Press.
Barry, J.D. et al., 2012, 2016. Faithlife Study Bible. Bellingham, WA: Lexham Press.
Carson, D.A. org., 2018. NIV Biblical Theology Study Bible, Grand Rapids, MI: Zondervan.
Crossway Bibles, 2008. The ESV Study Bible. Wheaton, IL: Crossway Bibles.
Geisler, N. L., ed. 1999. Manual popular de dúvidas, enigmas e “contradições” da Bíblia. SP: Mundo Cristão.
Murphy, R.E., 1990. The Song of Songs: a commentary on the Book of Canticles or the Song of Songs S. D. McBride, org., Minneapolis, MN: Fortress Press.
Sproul, R.C. org., 2015. The Reformation Study Bible: English Standard Version (2015 Edition), Orlando, FL: Reformation Trust.
Strong, J., 2002. Léxico Hebraico, Aramaico e Grego de Strong.
Waltke, B.K. & O’Connor, M., 2006. Introdução à Sintaxe do Hebraico Bíblico 1a edição., São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã.
Whitaker, R. et al., 1906. The Abridged Brown-Driver-Briggs Hebrew-English Lexicon of the Old Testament: from A Hebrew and English Lexicon of the Old Testament by Francis Brown, S.R. Driver and Charles Briggs, based on the lexicon of Wilhelm Gesenius.
Pr Pastor Cosme de Moraes