Há um mal indizível neste mundo e dor e
sofrimento inacreditáveis. Quando vemos isto, somos levados a fazer a mesma
pergunta feita várias vezes pelo povo do Antigo Testamento: Por que os ímpios
prosperam e os justos sofrem? Existem poucas pessoas que, em meio ao
sofrimento, conseguem dizer: “Nu saí do ventre de minha mãe e nu voltarei; o
Senhor o deu e o Senhor o tomou; bendito seja o nome do Senhor” (Jó 1.21). Isto
exige um profundo entendimento do caráter de Deus e uma profunda confiança na
sua bondade e presença.
É provável que Pedro tenha escrito esta
carta pouco antes ou depois do incêndio de Roma, e no começo dos horrores de um
período de 200 anos de perseguição aos cristãos. O sofrimento cristão constitui
o tema principal de 1 Pedro 4.12-19, e é tratado de várias maneiras: como um
meio de testar o cristão (v. 12), como um motivo de alegria (v. 13b), como um
caminho para participar do sofrimento de Cristo (v. 13a), como forma de
glorificar a Deus (v. 16), como inútil se merecido por razões não-cristãs (v.
15), e como o início do juízo de Deus (v. 17), que será mais difícil para seus
algozes do que para os cristãos (vv. 17b-18). Nesta passagem, portanto, Pedro
apresenta-nos como devemos reagir diante dos sofrimentos:
1. Não estranhe o sofrimento (1 Pe
4.12). O primeiro fator que nos ajudará a atravessar as mais
difíceis provações é esperar por elas. As provações e perseguições não devem
ser vistas como incomuns ou “estranhas” para o cristão. Pedro diz-nos que
devemos considerar o sofrimento parte normal da caminhada com Cristo. Não temos
direito de esperar ser tratados com mais consideração do que nosso Salvador o
foi (1Pe 2.21). Todos que desejam ter uma vida piedosa em Cristo Jesus são
perseguidos (2Tm 3.12). Aqueles que identificam-se abertamente com Cristo
tornam-se alvo de ataques violentos. O próprio Senhor Jesus deixou isto claro:
No mundo, passais por aflições; mas tende bom ânimo; eu venci o mundo (Jo
16.33). O apóstolo João é enfático: Irmãos não vos maravilheis se o mundo vos
odeia (1Jo 3.13). E Paulo igualmente quando disse que “… através de muitas
tribulações nos importa entrar no reino de Deus (At 14.22b).
Embora Pedro esteja a focar a
perseguição como consequência de nossa fé e identificação com Jesus Cristo, a
expressão “ardente prova”, em 1 Pedro 4.12, pode referir-se a qualquer tipo de
problema ou aflição. Em 1 Pedro, a ardente prova é símbolo da aflição destinada
por Deus para purificar-nos. Como lemos no livro dos Salmos: “Pois tu, ó Deus,
nos provaste; tu nos afinaste como se afina a prata” (Sl 66.10). O sofrimento é
um meio para testar o cristão. O sofrimento revela a verdadeira fé daquela que
é mera imitação.
Pedro não reconhece qualquer conflito
entre a glória de Deus e o sofrimento que há neste mundo. Nossas provações não
são sem propósito. O Deus que remiu-nos considera nossa alma mais preciosa do
que ouro, e assim como o ouro é refinado pelo fogo, nós também somos refinados.
Apesar de sofrermos por um momento, o objetivo de Deus é a nossa redenção, não
a nossa destruição.
2. Alegre-se no sofrimento (1 Pe
4.13-14). Isto lembrar-nos das palavras do Senhor Jesus nas Bem-Aventuranças:
“Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem, e mentindo,
disserem todo o mal contra vós por minha causa. Exultai e alegrai-vos, porque é
grande o vosso galardão nos céus; porque assim perseguiram os profetas que
foram antes de vós” (Mt 5.11,12). Tiago diz que devemos ter motivo de toda a
alegria o passarmos por diversas provações (Tg 1.2–4). Os apóstolos
consideraram um privilégio sofrer pelo nome Cristo (At 5.40,41). Paulo diz:
Porque vos foi concedida a graça de padecerdes por Cristo e não somente de
crerdes nele (Fp 1.29). Esta é uma das exortações mais desafiadoras da Bíblia.
Pedro não está dizendo que os crentes
devam ter uma atitude masoquista em relação ao sofrimento. Nenhum cristão deve
alegrar-se com o comportamento diabólico, desumano e perverso dos perseguidores
da igreja de Cristo. Nossa alegria não está ligada à dor ou à dificuldade em si
mesma, mas no soberano propósito de Deus em nossas vidas. Não nos alegramos por
ter uma dor de cabeça. Não nos alegramos por ter um cancro nos consumindo. O
que nos alegra é a presença de Deus no meio de nossa dor. Deus nunca prometeu,
a qualquer um de nós, que jamais iríamos para o vale da sombra e da morte. O
que Ele prometeu é que iria connosco (Sl 23). Nós temos um bom pastor, sua
presença e consolação. “Isto não significa que somos removidos da arena da dor,
mas que somos sustentados por Deus na arena da dor” (Sproul). É nas nossas fraquezas que o poder de Cristo melhor
revela-se em nós e através de nós (2 Co 2.9). A graça de Deus capacita-nos a
lidar com o sofrimento, sem perdermos a alegria nem a doçura (2Co 12.10). Não
estamos sozinhos. Cristo prometeu estar connosco todos os dias até a consumação
dos séculos (Mt 28.20).
Se os crentes forem fiéis em aceitar o
sofrimento e a perseguição como Jesus aceitou, então quando Ele voltar eles se
alegrarão com uma intensidade que sobrepuja a todas as outras alegrias. O
privilégio de participar dos sofrimentos de Cristo deve ser motivo de grande
alegria (4.13). Não podemos ser coparticipantes dos seus sofrimentos
redentores; apenas ele levou os pecados dos homens sobre si. Podemos, contudo,
participar da rejeição e opróbrio que ele suportou e receber em nosso corpo os
ferimentos e cicatrizes que os ímpios ainda desejam infligir em nosso Senhor.
Neste sentido, nos identificamos com Cristo (Rm. 8.17; 2Co 1.5; Cl 1.24).
Se um filho de Deus já é capaz de
alegrar-se hoje em meio ao sofrimento, quanto maior não será seu regozijo na
revelação da glória de Cristo. Aqueles que sofreram por amor a ele serão
honrados com ele nesta ocasião (4.13). Como escreveu Paulo “… os sofrimentos do
tempo presente não podem ser comparados com a glória a ser revelada em nós (Rm
8.18b). Porque a nossa leve e momentânea tribulação produz para nós eterno peso
de glória, acima de toda comparação (2Co 4.17). Paulo ainda escreve: … se com
ele sofremos, também com ele seremos glorificados (Rm 8.17b). No céu, nossas
lágrimas serão enxugadas, nossa dor passará. Não haverá nem luto, nem pranto,
nem dor (Ap 21.4). Esta é a grande esperança cristã.
Há ainda mais uma razão para reagirmos
com uma atitude de alegria em face da perseguição por pertencermos a Cristo: O
Espírito Santo repousa sobre nós de uma forma especialmente poderosa (1 Pe
4.14). Pedro chama o Espírito Santo de “o Espírito da Glória”. No Antigo
Testamento, a glória significava a presença de Deus ilustrada na sarça ardente,
na intensa presença de Deus sobre o monte Sinai, na coluna de fogo que guiou os
israelitas no deserto e na nuvem que encheu o tabernáculo e o templo. O crente
é a habitação do Espírito Santo (Rm 8.9), mas este repousar do Espírito Santo é
uma graça e presença especial. Somente Ele pode dar-nos a graça que é
suficiente para atender as exigências de nosso sofrimento.
3. Não sofra por razões não-cristã (1
Pe 4.15). Nem todo sofrimento é segundo vontade preceptiva de Deus
(4.19) e nem todo sofrimento glorifica a Deus (4.16). Há sofrimentos provocados
pelo próprio homem (4.15). O texto sagrado menciona quatro males pelos quais
nunca devemos sofrer. Um cristão não deve ser culpado de matar, roubar, de ser
um malfeitor ou até mesmo ser alguém que intromete-se de forma injustificada em
negócios alheios. As consequências destes atos não glorificam o nome de Deus,
mas apenas envergonham o testemunho de Cristo. Um cristão não deve trazer
sofrimento para si por ter praticado o mal (4.14). O cristão não pode ser um
causador de confusão. Ele respeita a vida alheia, os bens alheios, a honra
alheia e a privacidade alheia (4.15; 2Ts 3.11). É vergonhoso para um cristão
ser acusado e condenado num tribunal por estes pecados e crimes.
4. Glorifique a Deus no seu sofrimento
(1 Pe 4.16). Os cristãos devem sofrer de maneira a trazer honra a Deus em
vez de descrédito. O cristão pode glorificar a Deus com este nome em todas as
tribulações. Não há desonra nenhuma em sofrer como cristão. Este princípio é
válido mesmo que implique “perder negócios, a reputação ou o lar; ser
abandonado por pais, filhos e amigos; ser incompreendido, odiado e até perder a
vida”.
5. O sofrimento do cristão é pedagógico
(1 Pedro 4.17, 18). O juízo de Deus começa dentro da igreja (4.17,18). Antes de
tratar com o mundo, primeiro Deus trata com a igreja. No Antigo Testamento, a
"casa de Deus" refere-se ao templo, mas agora o povo de Deus é o seu
templo (1 Pe 2.4-10). O julgamento que começa na casa de Deus aqui não é punitivo,
mas purificador e santificador. Este julgamento pode ter o propósito de
purificação (Hb 12.9-11) ou de fortalecer a fé (1.6, 7). Não refere-se a
condenação, mas a limpeza e correcção da igreja pelas mãos amorosas de Deus.
Portanto, devemos avaliar nossas próprias perseguições dentro do grande
contexto da obra de purificação e aperfeiçoamento que Deus faz em sua Igreja.
Poderá haver ocasiões em que Deus, como um Pai amoroso, precise disciplinar-nos
(como correção por causa do pecado ou) para que o sirvamos com mais fidelidade
(Hb 12.5-13).
A perseverança é a evidência de que
você realmente pertence a Cristo (Hb 3.12-15; 1 João 2.19). Aqueles que não
permanecem com Cristo quando são testados pelo sofrimento pertencem “aos que
não obedecem ao evangelho de Deus”, os quais serão julgados e condenados (1 Pd
4.3-5).
O profeta Daniel descreve uma época em
que um dos governantes dos últimos dias “proferirá palavras contra o
Altíssimo, magoará os santos do Altíssimo” (Dn 7.25). A questão
crucial para você nestes dias — e naqueles dias — é você perseverará? Tendo em
vista as tentações e os perigos aos quais os cristãos estão sujeitos, só o
milagre da graça divina pode preservá-los até chegarem ao reino celestial
(MacDonald, W. 2011).
Com base em provérbios 11.31, Pedro
levanta a seguinte questão: se é com dificuldade que o justo é salvo, onde vai
comparecer o ímpio, sim, o pecador? Pedro conhecia a sequência do julgamento de
Deus para esta época, que começa connosco e atingirá os incrédulos numa fúria
total e final (muitíssimo diferente da disciplina e depuração por que
passamos). Pedro usou este contraste para dar-nos a correta perspectiva do
processo global (vide 2 Ts 1.4-7). É muito melhor suportar o sofrimento
enquanto o Senhor purifica e fortalece a igreja do que suportar o sofrimento
eterno do incrédulo no lago de fogo.
6. Confie em Deus no sofrimento (1 Pe
4.19). O sofrimento é, em última análise, parte da “vontade de
Deus”, e os crentes devem, portanto, “confiar suas vidas” a Ele, visto que Ele
é o “Criador fiel” e “para aqueles que amam a Deus, todas as coisas contribuem
para o bem” (Rm 8.28). Deus governa sobre tudo o que acontece em nossas vidas
(ver 1 Pe 3.17).
Deus é o nosso Criador amoroso e fiel.
Devemos confiar nossas vidas inteiramente a ele, assim como Jesus fez quando
sofreu. “O qual, quando o injuriavam, não injuriava, e quando padecia não
ameaçava, mas entregava-se àquele que julga justamente” (1 Pedro 2.23).
O sofrimento não deve ser usado como
desculpa para pecarmos. O sofrimento é uma oportunidade para nos entregarmos a
Deus e fazermos o bem aos outros, dando testemunho da nossa fé (4.19b). O
cristão não deve pensar que o seu sofrimento é algo que aconteceu de modo
acidental. Deus permitiu-a e designou-a para provar-nos, purificar-nos e
limpar-nos.
Deus é fiel e totalmente digno da nossa
confiança. Não podemos julgar a bondade e o poder de Deus antes de vermos os
novos céus e a nova terra, onde a dor é banida, o sofrimento é aniquilado e a
morte é expulsa para sempre. Deus é soberano até mesmo sobre nosso sofrimento e
dá alívio em seu bom tempo (1 Pe 4.19); “depois que tiverem sofrido por um
pouco de tempo, ele os restaurará, os sustentará e os fortalecerá, e os
colocará sobre um firme alicerce” (1 Pedro 5.10).
Se acreditarmos que o nosso sofrimento
é resultado do acaso, à parte da vontade de Deus, somos as pessoas mais
miseráveis do mundo. Mas se confiamos que há um propósito de Deus em nossa dor,
ainda que não tenhamos todas as respostas, seremos capazes de dizer com Jó: “eu
sei que o meu Redentor vive e por fim se levantará sobre a terra” (Jó 19.25).
Ou, então, como testemunhou o profeta
Habacuque: “Porque ainda que a figueira não floresça, nem haja fruto na vide;
ainda que dececione o produto da oliveira, e os campos não produzam mantimento;
ainda que as ovelhas da malhada sejam arrebatadas, e nos currais não haja gado;
todavia eu me alegrarei no Senhor; exultarei no Deus da minha salvação. O
Senhor Deus é a minha força, e fará os meus pés como os das cervas, e me fará
andar sobre as minhas alturas” (Hb 3.17-19).
________
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P.J. 1996. 1 Peter: a commentary on First Peter E. J. Epp, ed. Minneapolis, MN:
Fortress Press. / Arndt, W., Danker, F.W., et al. 2000. A Greek-English lexicon
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1884–1885. Notes on the New Testament: James to Jude R. Frew, ed. London:
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Bible, Wheaton, IL: Crossway Bibles. / Holmer, U. 2008. Comentário Esperança, Primeira Carta
de Pedro. Curitiba: Editora Evangélica Esperança. / Kistemaker, S.J.
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2Pedro. SP: Cultura Cristã.
Pastor Leonardo Cosme de Moraes