A GENEROSIDADE DE DEUS

 Mateus 20.1-16


Ao final de ‘O Peregrino’, João Bunyan observa que existe uma entrada para o inferno mesmo junto às portas do céu. Judas Iscariotes é uma prova disto. Na noite em que traiu a Cristo com um beijo, ele saiu da presença de Jesus para sempre e selou a sua ruína eterna. Num certo sentido, sua entrada no inferno deu-se às portas do céu. Todavia, há também uma realidade contrastante ilustrada no ministério terreno do Senhor Jesus: ‘o pior pecador pode ser conduzido ao céu, estando às portas do inferno’ (MacArthur, 2008). Publicanos, prostitutas, ladrões e moribundos, todos encontraram em Jesus um Salvador que deu-lhes vida eterna. Ninguém estava além do alcance do seu poder redentor. Todo o pecador arrependido que, pela fé, rendeu-se a Jesus, recebeu salvação completa (Hb 7.25).


Vemos um homem que é chamado ao arrependimento e à fé ainda na infância, como Timóteo. Vemos outro homem que é salvo por Cristo na “hora undécima”, como o ladrão na cruz. Mesmo assim, o evangelho permite-nos crer que estes dois homens estão perdoados diante de Deus (Ryle, 2018).


Em Mateus 20.1-16, Jesus conta uma parábola que ilustra este princípio. Esta é uma parábola acerca do reino dos céus, onde a graça de Deus é o fator predominante. Portanto, esta parábola é uma lição espiritual, e não é uma aula sobre justiça trabalhista. O ensino básico é que Deus nos chama para fazermos parte de seu reino em tempos diferentes, e a todos aqueles a quem ele chama, oferece a mesma coisa (Lopes, 2019).


A Parábola 

A parábola descreve um dono de uma propriedade que saiu de madrugada para contratar trabalhadores para sua vinha. Estes homens foram contratados para trabalhar por um denário por dia (uma moeda de prata), um ordenado razoável naquele tempo. Suponhamos que começariam a trabalhar às 6 horas da manhã (20.1-2). O proprietário continuou verificando a praça ao longo do dia e, sempre que encontrava trabalhadores disponíveis, mandava-os para a vinha com a promessa de pagar-lhes “o que for justo”. O dia de trabalho estava praticamente encerrado, quando o versículo 6 diz que ele voltou mais uma vez “por volta das cinco horas da tarde”. Restava apenas uma hora de trabalho, mesmo assim encontrou trabalhadores à toa e contratou-os para sua vinha (Sproul, 2017). No fim do dia (Lv 19.13; Dt 24.14,15), o proprietário da vinha instruiu seu administrador a pagar os trabalhadores, começando pelos últimos, e indo até os primeiros. Aqueles que haviam trabalhado uma hora receberam um denário. Aqueles que haviam trabalhado três horas receberam um denário. Aqueles que haviam trabalhado seis horas receberam um denário. E aqueles que haviam passado o dia todo (12 horas) trabalhando receberam um denário (MacDonald, 2011). 


Era o mesmo pagamento para todos — um denário (20.9-12). Mas os homens que passaram o dia inteiro ali consideraram os salários injustos, pois haviam realizado o grosso do trabalho sob o calor do sol enquanto os outros haviam trabalhado durante apenas um curto período no frescor da tarde (Mt 20.11-12). Quando o proprietário da vinha ouviu a queixa, respondeu a um deles: “Amigo, não estou sendo injusto com você. Você não concordou em trabalhar por um denário? Receba o que é seu e vá. Eu quero dar ao que foi contratado por último o mesmo que lhe dei. Não tenho o direito de fazer o que quero com o meu dinheiro? Ou você está com inveja porque sou generoso?” (20.13-15). A queixa deles foi: Tu os igualaste a nós. Eles não estavam apenas insatisfeitos com o que haviam recebido, mas também invejosos do que os outros receberam. Eles não suportavam a ideia de que alguém que havia trabalhado menos do que eles, receberia o mesmo salário. De repente, a gratidão pela generosidade do proprietário deu lugar a um ressentimento (Sproul, 2017; Carson, 2018).


O Significado 

O prefácio e o epílogo desta parábola consistem num único provérbio: “Muitos primeiros serão últimos, e muitos últimos serão primeiros” (Mt 19.30). E o mesmo provérbio é repetido no fim da parábola: “Assim, os últimos serão primeiros, e os primeiros serão últimos” (20.16). Encontramos um eco deste mesmo provérbio também na própria parábola, na expressão-chave em Mateus 20.8 quando o proprietário instrui o administrador a como pagar os trabalhadores: “Chame os trabalhadores e pague-lhes o salário, começando com os últimos contratados e terminando nos primeiros.”


Como pode o que termina primeiro ser o último e vice-versa? Numa corrida, chamaríamos isso de empate. Todos atingem a linha de chegada absolutamente juntos. Os primeiros contratados e os últimos contratados receberam exatamente o mesmo salário; independentemente do número de horas que cada um trabalhou. 


Qual é a lição espiritual desta história? Deus concede a mesma graça abundante a todos que entram no seu Reino. Não importa durante quanto tempo você trabalhou no Reino de Deus. Não importa se suas circunstâncias foram difíceis ou fáceis. Se você for um seguidor de Cristo, quando esta vida terrena acabar você estará com Cristo. Os benefícios do Reino são iguais para todos porque fomos salvos apenas pela graça de Deus, e por nada além disso.


As epístolas referem-se a diferentes galardões, mas este não é o ponto salientado nesta parábola (1Co 3.14-15; cf.: tb.: Ap 4.10-11). A questão aqui é a da igualdade na salvação. O céu em si não é uma recompensa que pode ser conquistada por meio de trabalho duro. Em Cristo “não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher”; porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gl 3.28). Os últimos são os primeiros, e os primeiros, últimos (MacArthur, 2016). 


Os Princípios 

A parábola está repleta de princípios vitais, incluindo alguns que representam verdades centrais do evangelho.

Esta parábola é sobre a misericórdia de Deus. É sobre a graça daquele que possui uma vinha e que, em sua misericórdia, concede benefícios às pessoas que não os merecem. Na parábola, aqueles que chegaram ao final do dia não tinham como atender às exigências normais para ganhar um denário. Mesmo assim, o proprietário da vinha deu-lhes o denário. O primeiro grupo recebeu justiça. Todos os grupos que vieram depois receberam graça e misericórdia. Aqueles, entretanto, que receberam justiça queixaram-se de ter sido vítimas de injustiça, alegando que o proprietário não era justo. Eles achavam que o proprietário devia-lhes algo (20.11-12). Mas Deus nada nos deve, exceto sua ira como punição por todos os nossos pecados. Apesar disso, tudo o que temos vem dele, não porque merecemos, mas porque ele nos provê em misericórdia.


É Deus quem, soberanamente, toma a iniciativa da salvação (20.15, 16). Tal como o proprietário que saiu à procura de trabalhadores para a sua vinha, é Deus quem inicia a salvação. É Ele quem procura e salva, e é Ele que traz pecadores ao seu reino. Embora as pessoas tenham de decidir seguir a Cristo, em última análise, a salvação não é uma decisão humana. Deus é o Autor e o Consumador da nossa fé (cf. Hb 12.2). Nós O amamos porque Ele nos amou primeiro (cf. 1 Jo 4.19). Nossa salvação é exclusivamente obra dele, e esta é a razão principal pela qual não temos direito de fazer exigências ou impor limites ao que ele dá à outra pessoa. A generosidade de Deus confunde o orgulho da natureza humana. Ela não permite que o homem se vanglorie em justiça própria.


Deus continua a chamar pessoas para o reino. O proprietário voltou à praça diversas vezes para chamar trabalhadores para a vinha. Ao longo de toda a história humana e em cada fase da vida de um ser humano, Deus está chamando pessoas para o seu Reino. Jesus disse em João 9.4: “Enquanto é dia, precisamos realizar a obra daquele que me enviou. A noite se aproxima, quando ninguém pode trabalhar.” A redenção continua até o juízo. E esse juízo está vindo.


Deus sempre dá mais do que merecemos. “Toda boa dádiva e todo dom perfeito vêm do alto, descendo do Pai” (Tg 1.17). E tudo que recebemos que não seja a condenação eterna é mais do que merecemos. Deus é gracioso, e sempre deveríamos celebrar a sua graça. Portanto, não há espaço para que o cristão fique ressentido com a graça que Deus concede a outros. O dono da vinha repreendeu aqueles homens por sua inveja: “São maus os teus olhos porque eu sou bom?” (Mt 20.15). Não devemos nutrir nenhum sentimento de ressentimento por causa da bondade de Deus (20.11,12). Deus nunca está em dívida connosco. Mesmo depois de havermos feito tudo, continuamos a ser servos inúteis (Lc 17.10).


No reino dos céus, muitos que agora são os últimos serão os primeiros, e muitos que agora são os primeiros serão os últimos (19.30; 20.16). Deus nunca permitirá que os ramos mais antigos de sua igreja olhem com desdém para os ramos mais recentes (20.8,9). Coletores de impostos, prostitutas, mendigos e cegos compartilharão a mesma vida eterna como aqueles que serviram durante toda a sua vida; como aqueles que pregaram o evangelho a milhares; como aqueles que morreram como mártires por Cristo. A graça de Deus é abundante até mesmo para o maior dos pecadores. Esta é uma razão para louvarmos a glória da graça de Deus e para regozijarmos com todos que receberam esta mesma graça.


Uma Reflexão Solene 

Alguma vez você já refletiu sobre o contraste que existe entre Judas Iscariotes e o ladrão na cruz? 

Judas Iscariotes era um discípulo de Cristo, membro do círculo mais íntimo dos Doze. Ele pregou, evangelizou, serviu e até recebeu o poder de “curar enfermidades” (Lc 9.1). Ele parecia ser um discípulo modelo. Quando Jesus predisse que um dos Doze o trairia, ninguém apontou para Judas. Os outros discípulos confiavam tanto nele que o haviam elegido seu tesoureiro (Jo 13.29). Mas ele traiu Jesus, encerrou sua própria vida cometendo suicídio e entrou na condenação eterna. As palavras de Cristo sobre ele em Marcos 14.21 são assombrosas: “Ai daquele que trai o Filho do homem! Melhor lhe seria não haver nascido.”


O ladrão na cruz, por outro lado, era um criminoso. Ele é chamado de “ladrão” em Mateus 27.38. Originalmente, ele deveria ser executado com Barrabás, um revolucionário e assassino (Lc 23.19). Ele era claramente um homem mau, pois nas primeiras horas da crucificação ele e seu parceiro no crime zombavam de Jesus juntamente com a multidão (Mt 27.44). Mas o criminoso endurecido vivenciou uma surpreendente mudança em seu coração. Literalmente, nos últimos minutos de sua vida, ele confessou seu pecado (Lc 23.41), fez uma simples oração: “Jesus, lembra-te de mim quando entrares no teu Reino” (Lc 23.42), e naquele mesmo dia foi salvo e levado para o paraíso (Lc 23.43). 


Este ladrão não havia feito nada para merecer o céu. Ninguém que pecou tem o direito de reivindicar a bondade de Deus (MacArthur, J. 2016). Justiça plena significaria a morte imediata para todo pecador, pois “o salário do pecado é a morte” (Rm 6.23). A Bíblia diz que Cristo expiou completamente os pecados daqueles que confiam nele. Ele “morreu por nós, sendo nós ainda pecadores” (Rm 5.8). Visto que Cristo tomou sobre si a penalidade do pecado, Deus pode justificar o pecador que crê sem comprometer sua própria justiça (Rm 4.5). Ele “demonstrou a sua justiça, a fim de ser justo e justificador daquele que tem fé em Jesus” (Rm 3.26). Como diz a Escritura: “Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para perdoar os nossos pecados e nos purificar de toda injustiça” (1João 1.9). 


Contudo, tenhamos o cuidado de não supor, com base nesta parábola, que é seguro adiar o arrependimento para os últimos anos da vida. Este pensamento é uma ilusão das mais perigosas. Pouquíssimas pessoas são salvas no leito de morte. Como escreveu Ryle (2018): “Um dos ladrões sobre a cruz foi salvo para que ninguém se desesperasse da salvação; mas somente um, para que ninguém tenha presunção. A Bíblia diz: “Eis agora o tempo sobremodo oportuno, eis agora o dia da salvação” (2Co 6.2).


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Referências: Carson, D.A. 2018. The Gospels and Acts. (Em D. A. Carson, ed. Biblical Theology Study Bible NIV. Grand Rapids, MI: Zondervan, p. 1738–1739). / Crossway Bibles, 2008. The ESV Study Bible, Wheaton, IL: Crossway Bibles. / Lopes, H.D. 2019. Mateus: Jesus, o Rei dos Reis. SP: Hagnos. / MacArthur, J. 2008. O Evangelho Segundo Jesus. São José dos Campos, SP: Editora FIEL. / MacArthur, J. 2016. As parábolas de Jesus. Thomas Nelson Brasil (Uma lição sobre Justiça e Graça). / MacDonald, W. 2011. Comentário Bíblico Popular: Novo Testamento. SP: Mundo Cristão. / Snodgrass, K. 2010. Compreendendo todas as parábolas de Jesus: guia completo. RJ: CPAD, p. 510-534. / Ryle, J.C. 2018. Meditações no Evangelho de Mateus. São José dos Campos, SP: Editora FIEL. / Sproul, R.C. 2017. Estudos Bíblicos Expositivos em Mateus. SP: Editora Cultura Cristã (Mt 20.1-16). 


Pastor Leonardo Cosme de Moraes
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