​O evangelho que Paulo jamais pregaria

1 Coríntios 9.19-23 


Muitos costumam citar o apóstolo Paulo como alguém que defendeu a acomodação do evangelho ao gosto do auditório. Afinal de contas, o apóstolo realmente escreveu: “Fiz-me fraco para com os fracos, com o fim de ganhar os fracos. Fiz-me tudo para com todos, com o fim de, por todos os modos, salvar alguns. Tudo faço por causa do evangelho, com o fim de me tornar cooperador com ele” (1 Co 9.22,23). Estaria o apóstolo sugerindo que a mensagem do evangelho pode ser ajustada a fim de atrair as pessoas? Até que ponto Paulo teria se mostrado disposto a seguir o princípio de “contextualização”?


Algo está muito claro no Novo Testamento: Paulo não era um bajulador. Ele escreveu: “Porventura, procuro eu agora o favor dos homens ou o de Deus? Ou procuro agradar a homens? Se agradasse ainda a homens, não seria servo de Cristo” (Gl 1.10, 5.11). Para Paulo, a verdade era algo a ser comunicado, não algo a ser negociado. Paulo não se envergonhava do evangelho (Rm 1.16). Estava disposto a sofrer por amor à verdade (2 Co 11.23-38). Não recuou diante da oposição ou da rejeição. Em 1 Coríntios 15.3, ele disse que pregou o evangelho exatamente como o recebeu do Senhor — “vos entreguei o que também recebi”. O facto de ter sido apedrejado e deixado como morto (At 14.19), de ter sido açoitado, aprisionado e finalmente morto por amor à verdade deveria demonstrar que Paulo não adaptou sua mensagem para agradar os ouvintes. Então, o que Paulo tencionava dizer ao afirmar: “Fiz-me tudo para com todos, com o fim de, por todos os modos, salvar alguns” Tudo faço por causa do evangelho” (1 Co 9.22-23)?


O versículo 19 mostra acerca do que Paulo estava a falar. Não estava a descrever sua disposição de sacrificar a mensagem, mas sua disposição de sacrificar a si mesmo para pregar o evangelho. Desistiria de tudo — e até mesmo se tornaria um “escravo para com todos” — se isso contribuísse para a propagação do evangelho. Seu desejo de ganhar almas é o âmago deste texto; ele o repete diversas vezes: “a fim de ganhar o maior número possível”; “a fim de ganhar os judeus”; “para ganhar os que vivem debaixo da lei”; “para ganhar os que vivem fora do regime da lei”; “com o fim de ganhar os fracos” e “com o fim de, por todos os modos, salvar alguns”. Portanto, ganhar os outros para Cristo era o alvo de Paulo. Para fazer isso, ele estava disposto a desistir de direitos e privilégios, de sua posição, sua liberdade e, em última análise, até de sua própria vida. 


Vemos em Paulo uma atitude de sacrifício pessoal, não de comprometimento. Ele estava a ensinar que a liberdade cristã precisa estar restringida pelo amor (que é o tema central em 1 Coríntios 8-10). O apóstolo contemplou sua liberdade pessoal como algo a ser usado para a glória de Deus, não para seu próprio deleite. Ele aplicou ao evangelismo o princípio da servidão voluntária, fazendo-se “escravo” de todos para levar muitos a Cristo (1 Co 9.19; 2 Tm 2.10). 


Os crentes coríntios estavam a usar mal sua liberdade cristã, às custas dos outros. Os irmãos mais fracos estavam a tropeçar. Mas Paulo desejava que eles seguissem o seu exemplo. E qual era seu exemplo? Em 1 Coríntios 10.33 diz: “Assim como também eu procuro, em tudo, ser agradável a todos, não buscando o meu próprio interesse, mas o de muitos, para que sejam salvos”. Portanto, o apóstolo Paulo não estava a sugerir que a mensagem fosse amenizada, para ser mais aceita. Ele estava a admoestar seus leitores à negarem-se a si mesmos e a sacrificarem-se por amor à proclamação do evangelho de Cristo àqueles que não conheciam a Cristo.


Em 1 Coríntios 9.20, o apóstolo demonstra como a auto-negação funciona na prática: “Para com os judeus, como judeu... para os que vivem sob o regime da lei, como se eu mesmo assim vivesse”. Embora não estando “debaixo da lei”, Paulo estava disposto a sujeitar-se de boa vontade aos requisitos rituais da lei, a fim de ganhar os que estavam debaixo da lei (Vemos várias ilustrações deste princípio no NT: Atos 15.1-21; 16.1-3 comparar com Gl 2.1-5; Gl 2.11-14, At 21.17-26).


Se a mensagem do evangelho era uma ofensa, que fosse — “Nós pregamos a Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os gentios” (1 Co 1.23). Contudo, Paulo não estava disposto a tornar-se uma “causa de tropeço nem para judeus, nem para gentios” (1 Co 10.32). Ele não ofenderia nenhuma cultura desnecessariamente, mas procurava identificar-se culturalmente com os outros povos, quando a prática não violava a Palavra de Deus.


Em 1 Coríntios 9, lemos no versículo 21: “Aos sem lei, como se eu mesmo o fosse, não estando sem lei para com Deus, mas debaixo da lei de Cristo, para ganhar os que vivem fora do regime da lei”. “Aos sem lei” são os gentios. Paulo declarou que não estava “sem lei para com Deus, mas debaixo da lei de Cristo”. “Sem lei” aqui não é uma referência à lei moral. Paulo não encorajava ninguém a pensar que poderia se tornar um cristão e continuar seguindo um estilo de vida mundano. Ele estava a falar da liberdade dos aspectos cerimoniais e temporários da Antiga Aliança.  


Quando Cristo veio, os elementos cerimoniais da lei foram postos de lado, porque Ele era o cumprimento de tudo que eles prenunciavam. Já não seguimos mais as leis alimentares, as regras de pureza ou o sistema sacrificial da lei, mas estes não foram abolidos foram cumpridos em Cristo (Mt 5.17, 18). Nas palavras de Calvino (2012:209), “toda a economia mosaica, até onde é ela contrária à economia de Cristo, expirou, então as cerimônias também cessaram” (cf. p. ex.: Hb 8, 2 Co 3). A graça de Deus, contudo, ensina-nos a renunciar a impiedade e os desejos mundanos e a vivermos sensata, justa e piedosamente (Tt 2.12; Rm 8.4).


Quando pregava aos gentios, Paulo seguia os costumes e a cultura destes, até o ponto em que isto não entrava em conflito com a lei de Cristo. Ele procurava sempre remover qualquer ofensa pessoal, para que a ofensa do evangelho fosse única (Gl 2.12-14).


Em 1 Coríntios 9.22, referindo-se a um terceiro grupo, ele diz: “Fiz-me fraco para com os fracos, com o fim de ganhar os fracos” (v. 22). Quem são os fracos? Na teologia de Paulo esta expressão refere-se aos crentes imaturos que não entendem sua liberdade. Na comunidade judaica, por exemplo, alguns recém-convertidos ainda queriam observar os sábados, frequentar as sinagogas, seguir as leis dietéticas e observar todas as festas e cerimónias da economia Mosaica. Entre os gentios, por outro lado, existia os que haviam sido salvos da idolatria e que agora mostravam-se supersticiosos ou com medo de ter qualquer envolvimento com a carne oferecida aos ídolos. É evidente que Paulo estava livre desses temores e superstições. Ele também estava livre da lei cerimonial do AT. A lei de Cristo o governava. Contudo, Paula adaptava seu comportamento de forma a não ofender a sensibilidade dos irmãos mais fracos.


Por que Paulo sujeitou-se a tudo isso? 1 Coríntios 9.22,23 responde: “Com o fim de, por todos os modos, salvar alguns. Tudo faço por causa do evangelho”. Paulo queria tão-somente guardar-se de ser uma pedra de tropeço ou um obstáculo à consciência das pessoas, de forma que a mensagem do evangelho penetrasse em seus corações e realizasse sua obra. 


Se as pessoas ficassem ofendidas pela mensagem, Paulo não tentava remover a ofensa do evangelho ou abolir o escândalo da cruz e não tolerava os que assim procediam (Gl 5.11). Mas estava disposto a praticar a auto-negação se isso trouxesse oportunidades para a pregação do evangelho.


Embora tenha pregado aos pagãos mais vis do mundo romano, Paulo jamais adaptou a igreja ao gosto da sociedade secular. No tocante a sua mensagem, Paulo escreveu em 2 Coríntios 2.17: “Porque nós não estamos, como tantos outros, mercadejando a palavra de Deus; antes, em Cristo é que falamos na presença de Deus, com sinceridade e da parte do próprio Deus”.


Paulo nunca pregou um evangelho de graça barata, como observou Bonhoeffer. A graça barata é a pregação do perdão sem arrependimento, é o batismo sem a disciplina de uma congregação, é a Ceia do Senhor sem confissão dos pecados, é a absolvição sem confissão pessoal. A graça barata é a graça sem discipulado, a graça sem a cruz, a graça sem Jesus Cristo vivo, encarnado”.


Paulo não buscava tornar a si mesmo, ou o evangelho, mais simpático aos perdidos. Ele não pregava com o propósito de divertir os homens (Spurgeon). Ele não substitui a pregação do evangelho de Cristo por artifícios humanos. Seu propósito não era agradar o público e reunir uma multidão. Todo o seu propósito era evangelístico. 

________

Referências:  Calvino, J. 2013. 1 Coríntios. São José dos Campos, SP: Fiel Editora. / Kistemaker, S., 2014. 1 Coríntios. SP: Editora Cultura Cristã. / MacArthur, J. 1997. Com vergonha do evangelho: quando a igreja se torna como o mundo. São José dos Campos, SP: Fiel MacArthur, J. 1984. New Commentary, vl 17: 1 Corinthians. Moody Publishers. 


Leonardo Cosme de Moraes